A minha mãe trazia os olhos vestidos de desespero, via nos meus falta de vida, e no corpo falta de vontade. Não sabia já o que fazer, o que me fazer. Saiu do quarto. Apareceste tu. Percebi que te tinha chamado, o desespero de mãe corta todas as ideias que alimentam os princípios, que deixam de se ter, deixamos de pensar, passamos a só querer alguma coisa. Ela queria que eu quisesse. Trouxe-te para eu querer alguma coisa, para alguma coisa me agarrar, porque a nada me agarrava. Estás à minha frente e eu não queria, não queria que me visses assim, sem espinha, sem força nas pernas para te enfrentar, sem força nos olhos para te ver, cresci em mim, nasceram forças do vazio que trazia e enxotei-te, disse-te coisas para me magoarem mais a mim que a ti, porque sabia que isso te magoava, e não te queria ali perante a minha impotência, a minha falta de defesas e de vontades, de ganas, aquela não era eu, mas os restos mortais que a vida e tu e me deixaram. Inclinaste-me para o que eu penso seria a intenção de um beijo na testa, virei-te a cara, e disse-te só "Adeus". Tu resignado, sempre resignado, até perante a minha resignação que mal cabia naquele quarto de hospital, até assim te resignaste, até assim me deixaste ir, deixando-te ir. Passaste a porta e eu fiquei de novo vazia, mas cheia de inquietude. A minha mãe de novo. Passaram uns minutos no silêncio da confusão que me ia dentro há tanto tempo, disse só, "vai buscá-lo, nada disto faz sentido". Entraste outra vez, levantei-me com muito custo e pedi-te que te sentasses. Sentei-me ao teu colo, aninhei-me em ti, como se ontem tivesse sido a última vez, encostei o nariz ao teu pescoço e senti outra vez o mesmo calor, o teu cheiro de novo, a intimidade entranhada, abracei-te o que as forças deixavam, e senti-te tremer por dentro do peito, afastei-me para te ver melhor e tu começaste a tremer por fora, a soluçar, corria-te pela cara o que sempre prendeste naquele brilho mais brilhante que os teus olhos mostravam quando as conversas eram mais despedidas que conversas, mas desta vez, sem conversa, tu deixaste-te ir e choravas como um menino, e eu ouvia-te sem que falasses, não querias que te deixasse, e repetias vezes sem conta, e abraçavas-me com o medo da força com que o fazias, e eu respondi-te em voz para que me ouvisses por fora " não fui eu que te deixei, foste tu que me deixaste, foste tu que nunca me escolheste para ti", e calei-me enquanto com beijos pequeninos te secava as lágrimas que te desabavam dessa dor que não estancaste, a que te resignaste. Por fim o silêncio, por fim paraste, por fim parei.
[Repost de 9 de Maio de 2012, releio-me e percebo-me a falta. a falta de mim]
2 comentários:
espero nunca passar por isto que acabo de ler, Eva... comovente texto. »com beijos pequeninos te secava as lágrimas» doçura. tanta...
também espero nunca passar por isto... mas às vezes só em situações extremas as pessoas parecem perceber a vida e doçura que pode ter. É pena, porque muitas vezes é tarde.
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