Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

04 setembro 2014

Hoje acho que percebi alguns dos sonhos que me andam a devassar o sono, que me fazem acordar quatro, cinco vezes, por noite: fiz um trato comigo e não me levanto, e se me levanto não pode ser para escrever porque não quero acordar ainda mais o cérebro que já faz greve de sono pela natureza dos últimos meses. Esta noite acordei uma das vezes por volta das cinco e meia, em choro convulsivo, acordei e não conseguia parar, uma coisa estranha, como que entranhada na alma, e mesmo acordada não conseguia afastar-me do sonho, daquela sensação. Daquele desespero. Procurei acalmar, abrir os olhos, ver as horas, sentir-me real, descolar-me do sonho e parar de soluçar. Mas a sensação ficou por muito tempo. Tentei dormir novamente e passado um bocado venci-me, adormecendo. De manhã ainda tinha o sonho na pele da memória, o banho não o lavou nem o afundou ralo abaixo, e a caminho, com música calma na viagem, tentei perceber a sensação. Tenho a mania que os sonhos não são nada o que a história do sonho nos conta, a história - se calhar como na vida real, afinal - não interessa nada, é só um meio, um veículo que nos leva, só interessa o que nos faz sentir. Só isso é verdadeiro no sonho: o que sentimos. Serve só para nos fazer sentir, para nos fazer sentir daquilo que fugimos de sentir no dia a dia, ou que tentamos travar, racionalizar, e com que não sabemos lidar, no fundo. E enquanto dormimos o subconsciente trabalha-nos isso. Aí a nossa vontade está adormecida e não somos donos do que sentimos. É o que eu acho, e sempre que tento perceber o que raio me quero dizer e não me quero ouvir, começo a tentar perceber os sonhos que me agitam, que me ficam, que me assaltam de dentro para fora. E então percebi que tenho sonhado várias vezes com perdas, com mortes, com choros que não tive, com abraços que não dei, com mortes que ainda não morreram em mim. E hoje, hoje percebi que alguns desses sonhos - e o de hoje claramente-, não era aquela morte que chorava, era outra; não era o saber que estávamos no natal, altura de família e carinho e calor, não era o saber que eram os últimos dias da pessoa a quem agora reconheço mais que dantes, a quem agora tenho pena de ter abraçado menos, de quem agora agora vejo mais protecção e carinho do que via dantes, mesmo que veja os exactos mesmos defeitos, vejo mais claramente algumas qualidades, e algumas que sei que me faltam e que não as aprendi a tempo. Não era essa morte que eu chorava na certeza de ir acontecer, e de responder a alguém que me perguntava, porque não parava eu de chorar, "porque não sei quantas vezes mais o vou ver..." E esta frase ficou-me, penso até que foi a última antes de acordar, porque o choro convulsivo acordou-me. E essa frase, de carro, com uma música de fundo calma, disse-me tudo. Chorava uma morte sobre a qual sou também impotente, que também me impuseram e decretaram, e choro o que durante o dia não pude chorar, não uma morte que morreu para mim, mas uma morte que matam em mim. Para mim. Mas que é uma morte, uma perda, um vazio. Um luto com que luto. E os sonhos cruzam-se, e repetem-se, e falam de tudo o que não dizemos enquanto não quisermos ouvir. Mas se os ouvirmos aprendemos a ouvir-nos nos silêncios que nos impomos, com que nos enganamos, ou tentamos. 
Tenho muitas mortes para chorar, muitos lutos para fazer, muitas recordações com que viver ainda. Os sonhos massacram-me, mas talvez me vão ajudando a desfazer alguns nós. Assim eu perceba como o nó está dado e será uma questão de paciência e sabedoria para me desfazer dele, ou guardá-lo como lembrança do que lá estava quando nos apertou nele.

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