Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

27 agosto 2014

"(...) acabou-se o mundo lá fora. Ele conta-lhe tudo, pormenoriza-lhe os capítulos em que esteve dividido o dia. Sobre isso não há dúvida: é sincero com ela. Porque lhe conta coisas feias, coisas sujas, coisas terríveis. Como se soubesse que o amor dela é capa de aceitar esse lado negro do seu ser, essa zona do diabo que nunca mostra a ninguém totalmente.
(...)
Quando decidi ser como sou, fi-lo com toda a lucidez. Não vale dizer: que pena, enganei-me, peço perdão à sociedade, à família e ao fisco. Dir-me-ás: e a consciência? Não penses, eu também faço a mesma pergunta. A diferença está em que tu a fazes a mim, e eu a faço a esse fantasma chamado Deus. É a consciência?, pergunto-lhe. A minha pergunta, porém, é uma reclamação, como quando vais a uma loja protestar porque te deram um artigo com uma peça a menos. E a consciência? Isso é tremendo. Eu não tenho. Ou se tenho, nunca à encontrei.
(...) tinha chegado a captar, no entanto, que ela era uma espécie de instrumento, insignificante instrumento daquele homem difícil, impenetrável, duro. Tinha chegado a captar que era gozada, mas amada; desejada mas não necessitada. Ela era o instrumento de gozo do homem, e tinha validade enquanto ele precisasse dela como provocação dos seus sentidos."

Mario Benedetti, in Obrigada pelo lume

[... Relações estranhas de um instrumento de gozo a quem se conta o lado mais feio porque se sabe que aquele amor aguenta tudo... Um instrumento de vários sons e propósitos, com serventia para tanta coisa, mas nunca para amar realmente, de facto, assumidamente... E no meio disto tudo: a consciência? Onde fica, onde está? Não há, ninguém sabe. 

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