“Dançava como um títere, tendo os cordéis dentro dela, atados na alma. Depois tomou-me nos seus braços e, sem pedir, desapegou-me das roupas. De todas as roupas. Colocou-me a outra coroa e convidou-me para dançar com ela, os dois nus. O meu corpo não tinha cordéis na alma, apenas acanhamento; sentia-se vazio de música. Mas ela pegava-me nos braços, endemoninhava-me o corpo, arrastava-me no seu bailado revolto. E ria. Um sorriso que se media a palmos como se mede o diâmetro do mundo, redondo, grávido, imenso. E eu entrei dentro desse sorriso, onde coube nu e sem vergonha. E dancei com ela como dança um louco, como se não houvesse amanhã, como se o hoje fosse pouco. E quando os nossos corpos caíram na cama, despidos e cansados, dormimos como dormem as flores, caídas umas sobre as outras, a partilhar o calor, a dividir o luar. Só quando tudo dormia já, senti que havia música dentro de mim. Finalmente. Música…”
João Morgado
[...lembro-me de dizeres que eu beijava como quem gosta, lembro-me de dizeres que gostavas quando tinha pressa na vontade, quando a força do desejo se notava nos gestos, lembro-me de dizeres que gostavas de tudo em mim e de ficares a olhar para mim a dizer que eu era linda, lembro-me de dizeres que até da minha gargalhada gostavas e de ficares muitas vezes a olhar para a minha boca enquanto falava, lembro-me de a meio duma conversa qualquer me calares com um "adoro-te" ou com aquele "olá" da praxe que faz recomeçar tudo e começar pelo beijo que faltava, lembro-me de quando me querias desconcertar perguntares-me se hoje já alguém me tinha dito que sou linda, lembro-me de me chamares fera e bruxinha e cobra porque te enrolava nas minhas pernas, mesmo a dormir, lembro-me de dizeres que sabia dançar, que usava cada músculo como queria, lembro-me das conversas à lareira, ou com a porta da varanda aberta a ver o céu que restava para nós, lembro-me de dançar contigo à luz de copos de vinho, sentados no chão enquanto o teu braço nos fazia um só corpo e o balançar era o nosso silêncio a dizer o que as palavras não sabem.
Lembro-me ainda de tanta coisa, tanta coisa onde coubemos sem vergonha e inteiros (ou só eu), como se não houvesse amanhã, porque só havia o agora, e o agora era o nosso mundo, e a música era o silêncio dos olhares que conversavam, e em que as almas que se entendiam.
Quando é que o mundo acabou se ainda há música dentro de mim, mas o agora já era?
...não me lembro... ]
Boa Noite
[...lembro-me de dizeres que eu beijava como quem gosta, lembro-me de dizeres que gostavas quando tinha pressa na vontade, quando a força do desejo se notava nos gestos, lembro-me de dizeres que gostavas de tudo em mim e de ficares a olhar para mim a dizer que eu era linda, lembro-me de dizeres que até da minha gargalhada gostavas e de ficares muitas vezes a olhar para a minha boca enquanto falava, lembro-me de a meio duma conversa qualquer me calares com um "adoro-te" ou com aquele "olá" da praxe que faz recomeçar tudo e começar pelo beijo que faltava, lembro-me de quando me querias desconcertar perguntares-me se hoje já alguém me tinha dito que sou linda, lembro-me de me chamares fera e bruxinha e cobra porque te enrolava nas minhas pernas, mesmo a dormir, lembro-me de dizeres que sabia dançar, que usava cada músculo como queria, lembro-me das conversas à lareira, ou com a porta da varanda aberta a ver o céu que restava para nós, lembro-me de dançar contigo à luz de copos de vinho, sentados no chão enquanto o teu braço nos fazia um só corpo e o balançar era o nosso silêncio a dizer o que as palavras não sabem.
Lembro-me ainda de tanta coisa, tanta coisa onde coubemos sem vergonha e inteiros (ou só eu), como se não houvesse amanhã, porque só havia o agora, e o agora era o nosso mundo, e a música era o silêncio dos olhares que conversavam, e em que as almas que se entendiam.
Quando é que o mundo acabou se ainda há música dentro de mim, mas o agora já era?
...não me lembro... ]
Boa Noite
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