(...)
Sim, é quase seguro que a prudência fácil, este continuar como até agora, é quase seguro que isso seja o disparate. Não sou herói nem nada que se pareça. Bastou que Susana não acreditasse que eu falava sério, para que eu mesmo me levasse a brincar. Não estou para piadas, disse, e foi o suficiente para que as minhas palavras me soassem vazias. A verdade é que sei que não vou mudar, que não vou tomar nenhuma decisão abrupta, dramática. Enquanto se trata só de pensamentos, de um simples jogo mental, então sinto-me com ânimo, tenho a impressão de que vou decidir-me, de que vou dar o salto, mas quando chega o momento de criar os factos e enfrentar a sua responsabilidade, então dá-me um medo irracional, um pânico semelhante ao que me assaltava em pequeno (...) Não sei exactamente se é medo à miséria, à insegurança ou ao desprezo dos outros. Talvez seja menos digno que tudo isso. Talvez seja simplesmente medo ao incómodo, à falta de conforto. Porque quando penso que a minha vida é cinzenta, aborrecida e rotineira, não me escapa que a rotina inclui uma série de coisas insignificantes mas agradáveis.
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Pode ser-se feliz junto a uma pessoa frívola, mas desde que se pertença ao mesmo grupo sanguíneo. E Dolly não. Dolly tem vida interior. É profunda quando quer. A sua simpatia baseia-se particularmente no que não diz: silêncios, gestos, olhares, etc. (...) Dolly querida. Vi-a pela primeira vez quando eu já levava dez anos de casado. Era aquilo, claro, o que eu tinha andado à procura, e agora tinha-a Hugo. Casei-me com Susana porque pensei que Aquilo não existia, ou melhor, resignado a que Aquilo não existisse. E, naturalmente, se uma pessoa pensa que Dolly não existe, então Susana parece bem. Mas existe. Por exemplo, agora, ali, no jardinzinho.
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"Bem, agora está claro. Acabaram-se os sonhos. Mas deixa-me às vezes que fale contigo. Sinto que com ninguém, nem sequer quando estou sozinho, estou tão próximo da verdade. Da minha verdade, entendes-me? (...) como é que posso falar com ela, assim, de qualquer coisa, cães, mendigos e Cristina Jorgenssen? Creio que a amo mais, agora que estou seguro de que não acontecerá nada. Porque não a vi antes? Porque é que não levei a melhor ao Hugo? Com ela sim, sentir-me-ia valente. Ou isto será uma boa desculpa para me sentir cobarde?"
Mario Benedetti, in Obrigada pelo lume
[ existir o que não pensávamos existir, sentir o que achávamos só pertencer a telas e a páginas de romances bem escritos, depararmo-nos com o que procurávamos quando já não estávamos à procura, ou à espera. Nada nos prepara para isso, e nada nos salva disso. A conjugação perfeita, o estarmos com o outro como connosco próprios, sem reservas ou medos: inteiros. E a impossibilidade. As razões que se vão acrescendo para validar as cobardias, para as justificar e quase legalizar como quem moraliza.
O livro não é o que esperava, escreve em prosa tão diferente do que se sente na sua poesia, mas o giro é que se sente a mesma sensibilidade, só não descrita na prosa, apenas através de alguns pequenos pormenores que só os atentos atentam, e a sensibilidade, a humanidade profunda da história, principalmente das reflexões dos personagens, da sua bagagem psicológica, de medos, traumas e desejos. Os personagens são muito humanos, muito frágeis, muito reais, e por isso profundos. E a parte política reflectida como fenômeno sociológico mas também psicológico do indivíduo. Interessante, mas não o que esperava. Ainda assim não me desilude. E isso é bom, e bolas muito raro nos dias que correm... ]
4 comentários:
Deixaste-me curiosa! Será a próxima aquisição ;-).
Eu estou a gostar, e está quase a acabar... É difícil de encontrar, eu comprei na feira do livro, só a editora cavalo de ferro traduz e edita os livros dele. Podes encomendar pelo site eu vou encomendar o outro dele: A Tregua e um do Cortazar que nunca li nada dele e dos excertos que apanho na net, parece-me bom. Este lê-se bem, e ele tem algum sentido de humor... Depois diz o que achaste :)
"Era aquilo, claro, o que eu tinha andado à procura...". "Casei-me com Susana porque pensei que Aquilo não existia, ou melhor, resignado a que Aquilo não existisse. E, naturalmente, se uma pessoa pensa que Dolly não existe, então Susana parece bem..." Que grande verdade!...este Senhor sabe tanto sobre a vida! também fiquei cheia de vontade de o ler.
:)
Acabei hoje e tenho o livro marcado em mais uma série de páginas... Amanhã se conseguir faço a selecção para pôr aqui... E sim ele faz reflexões e pôs-me a pensar em muita coisa anacrônica no ser humano e nos seus comportamentos. Gostei.
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