"Carnuda, somente carnuda. Mas que tonta. Depois querem que uma pessoa acredite na existência de Deus. Como é que uma mulher pode ser tão cheiinha, tão perfeita, com aquele busto, com aquela boca, e sem cérebro? Seria necessário pôr-lhe um a transístores. Ou devolvê-la a Deus, como falha de fábrica. De qualquer modo, o baboso do noivo não há-de manusear-lhe precisamente o cérebro.
- Vou comer no centro, menina, por isso estarei de volta pelas duas.
- Lembra-se que às três marcou com o senhor Rios?
Como fará para ter memória, se não tem cérebro? Terá a memória instalada no busto? Lugar há, de sobra. Ali poderia ter a memória, o estômago, os meniscos, o pâncreas, tudo.
(...)
(...)quero que tenhas uma recordação criada por mim, algo a que possas agarrar-te; para mim é insuportável que tenhas perdido a tua mãe, que odeies o teu pai, que te sintas distante do Gustavo, que não possas comunicar com a Susana e que de vez em quando sonhes comigo; creio que tens direito a sentir-te, uma vez pelo menos, em consonância com as tuas emoções, com a tua vida; creio que tens o direito de te sentires pleno; confesso-te que para mim foi uma verdadeira crise; mas de repente vi claramente, vi que a morte está sempre a vingar-se das nossas vacilações; a nossa vida compõe-se de três etapas: vacilar, vacilar e morrer; a morte, em troca, não vacila diante de nós; mata-nos e acabou-se; e o grande espião, o formidável quinto pilar que a morte instalou em nós, chama-se escrúpulo; já sei, eu tenho escrúpulo, tu também, compreende que não estou contra o escrúpulo; mas é o quinto pilar da morte; porque graças ao escrúpulo, vacilamos, e passa-nos o tempo de gozar, de gozar esse minuto feliz que, como graça especial, foi incluído no nosso programa; passamos toda a vida a sonhar com desejos incumpridos, recordando cicatrizes, construindo artificial e mentirosamente o que podíamos ter sido; constantemente estamos a travar-nos, a conter-nos constantemente, estamos a enganar e a enganar-nos; cada vez somos menos verdadeiros, mais hipócritas; cada vez temos mais vergonha da nossa verdade (...)
(...)
-Está bem Dolores.
-Não me olhes assim.
-Olho-te como sempre.
-Não, não é como sempre. Olhas-me como...
-Como quê?
-Como um derrotado.
-É que sou um derrotado, não sabias?
-Prometes-me uma coisa?
-Não, Dolores, não te prometo nada.
Porque fica ali, junto à cancela, enquanto faço lentamente marcha atrás? Que se vá embora, que entre de uma vez por todas em casa. Com dificuldade posso suportar o vestido branco, mas não aquelas sandálias, não aquele colar, não aqueles brincos de molas, os mesmos que uma vez lhe fui tirando, que continuo a tirar-lhe, acordado ou a dormir, sempre. Porque te tenho e não*. Já não te tenho. Definitivamente não. Que se vá embora. Que desapareça. Que se feche. Que se esconda a chorar. Eu não me escondo.
(...)
Daí que a tremenda satisfação sexual com que me brindou a única união com Dolores seja, sobretudo, um derivado daquela comoção prévia. Olha-me, e o seu olhar não é sexo, mas profundidade, tristeza, palpável socorro. Todavia, o seu olhar e o seu sorriso, ao apanhar-me, espremem o meu coração, aceleram-no, lançam-no, e uma vez que o meu coração é lançado a amar, a urgir, a necessitar, submete-se ao sexo, e este passa a proceder como mera filial orgânica e os seus modos de amor deixam de ser os próprios para se transformarem em subsidiários dos modos de amor do coração. Ou seja, o meu tipo sexual pode ser, por exemplo, uma mulher de pernas bem torneadas, cabelo escuro, olhos verdes, mãos delgadas, ancas tangíveis, mas quando o olhar e o sorriso decisivos me alcançam e fulminam, o resto já não importa e a partir desse instante o meu sexo só se encontrará satisfeito na assunção desse corpo que me olhou e sorriu, (...) a minha sentença contra o Velho, tenha sobrevivido a partir do convencimento, a partir do vislumbre de que ela não ia aceitar, porque a esta altura talvez me seja insuportável estar livre sem ela, inocente e sem ela. Talvez eu esteja a engendrar urgentemente uma grande culpa, um absorvente remorso, só para cobrir uma ausência, para justificar a minha solidão.
(...)
Anos antes já o tinha intuído, mas só agora o confirmo: quando se deseja uma mulher, só se conhece metade do próprio desejo. O desejo completo sobrevem no instante em que se tem consciência de que também a mulher nos deseja. Então sim a pressão torna-se insuportável.
-Vamos?
Aqui estive com Dolores. Porque faço isto? Será que no fundo quero comparar? Ou talvez tente apagá-la, acabar com a sua imagem? (...) Quando o acto é de união total, como com Dolores, não exijo nada; não exijo nada, simplesmente, porque está tudo."
Mario Benedetti, in Obrigada pelo lume.
[o prometido é devido, aqui ficam os últimos excertos do livro que acabei há dias, os que me fizeram marcar as páginas porque me fizeram parar para reler, ou só rir-me com o sentido de humor deste escritor que vai sendo salpicado pelo livro. eu sou das que acho que o sentido de humor oportuno fica bem em todo lado, mesmo no meio de assuntos sérios que me fazem parar para pensar, identificar-me tanto que sorrio por falarem por mim o que sinto, concordar ou não, transpor, estabelecer paralelismos ou não, pôr-me a mim e outros naqueles pensamentos, tentar perceber chegar a algumas conclusões, tentar entender melhor o que nos faz seres humanos, e a diversidade enorme que há dentro do comum do amor, do que se sente, do que se sofre e pensa. Gostei.
(Não concordo totalmente com o escrúpulo, acho que o quinto pilar da morte - para usar as palavras de Benedetti - é o medo. O escrúpulo serve para nos travar e pensar melhor, ponderar onde nós começamos e acabam os outros, mas não nos impede obrigatoriamente, se impede é porque quebra as nossas próprias normas, e escrupulo é um conceito muito mais social que pessoal, e então na perspectiva social não é mais do que uma mera desculpa.)]
*parte dum poema de Mario Benedetti que está de certeza algures neste blog, em espanhol, e que no livro aparece traduzido (não fui buscar o post por preguiça, sorry, talvez noutro dia o faça...)
(Não concordo totalmente com o escrúpulo, acho que o quinto pilar da morte - para usar as palavras de Benedetti - é o medo. O escrúpulo serve para nos travar e pensar melhor, ponderar onde nós começamos e acabam os outros, mas não nos impede obrigatoriamente, se impede é porque quebra as nossas próprias normas, e escrupulo é um conceito muito mais social que pessoal, e então na perspectiva social não é mais do que uma mera desculpa.)]
*parte dum poema de Mario Benedetti que está de certeza algures neste blog, em espanhol, e que no livro aparece traduzido (não fui buscar o post por preguiça, sorry, talvez noutro dia o faça...)
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