Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

23 setembro 2014

"Vejo aquilo que não sou. Por exemplo (isto volto à explicá-lo, mas vem da mesma ideia): existem zonas enormes às quais jamais cheguei, e aquilo que não se conheceu é aquilo que não se é.

(...)

Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.(...) Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."

Julio Cortazar, in O Jogo do Mundo (Rayuela)

[sim, há coisas que se pudéssemos imaginar antes de as sabermos as imaginaríamos exactamente como viriam a ser. Ou assim achamos. Como tentar imaginar a perfeição. Tentar agora imaginar a perfeição é reproduzir com retoques o melhor de tudo o que se conhece. Quando a vida nos surpreende a imaginação explode, conquista territórios desconhecidos que não sabíamos existir, e todo um novo mundo se abre. Novas imaginações, perfeições mais perfeitas. Novos limites e novas dimensões de felicidade. E novas dimensões de infelicidade, por perdê-las, por desperdiçá-las, o que for. Aquilo que não se conhece é aquilo que não se é, mas aquilo que passamos a conhecer passa a ser parte do que somos, e de como descodificamos a loucura do mundo. Renegar isso não é não andar para a frente é andar para trás. Nada volta ao que era. Passamos a ser pessoas diferentes quando os nossos limites de imaginação, felicidade e infelicidade se movem. O mundo altera-se, nunca mais o vemos da mesma forma mesmo que nada tenha mudado, a essência alterou-se, a essência do nosso olhar sobre as coisas. E as coisas não são coisas são a maneira como as vemos. Um parafuso pode ser um deus (esta é de outra passagem do livro, mas estou preguiçosa), tudo depende do que vemos. E eu pergunto-me vezes sem conta o que verão quando me olham? ]

(É sacrilégio estar a escrever estas coisas com um texto com a beleza deste, duma boca perfeita que afinal existe. )

Boa noite

8 comentários:

Anónimo disse...

Tudo é relativo, vêem aquilo que deixa transparecer e dependendo de quem vê.

Eva disse...

Não, nem tudo é relativo. O amor é absoluto: ou se ama ou não se ama e ponto final (já dizia alguém), e quando se ama também é absoluta a forma como se vê quem se ama, aliás acho que quando começamos a amar deixamos de ver com os olhos e passamos a ver com o coração, que é como quem diz passamos a sentir, olhamos para o outro e sentimos senti-lo, e aí muitas vezes vêem-se coisas que até não existem, mas para é absoluto, não é nada relativo, infelizmente.
Dai eu ter curiosidade em saber o que se vê quando olham para mim, mesmo quem não me ama, como vêem ou como percepcionam o que deixo transparecer. Ou não.

Anónimo disse...

Dai o relativo dependendo de quem vê, se vê com o coração ou com os olhos ou até se nao vê. Mas se é relativo a alguém que nao a conhece muito bem, penso que nao fica nada desapontado, muito antes pelo contrario.
E como vai o tempo no topo do mundo hoje? Os deuses estão mais meigos consigo?

Eva disse...

Ahhhhhh muito agradecida!!!... Quem não me conhece não fica desapontado.... Obrigadinha sim senhor, já quem conhece foge a sete pés: certo!!
O tempo está bipolar: ora está cinzentao ora apanha um sozinho, e as vezes ainda chove um bocadinho, mas não está frio... Mas os deuses não têm sido nada meigos comigo, aliás estou a escrever isto e oiço o primeiro trovão desde domingo.... Lindo! Deve ser o pré-aquecimento para amanhã....

Anónimo disse...

E quando desce a Eva ao paraíso?

Eva disse...

No paraíso estou eu... Desço ao mundo amanhã. Se chegar...

Anónimo disse...

Estou a ver que o paraíso já não é o que era. Ora bolas (e trovões...)
Enjoy cada bocadinho do resto do teu tempo aí o melhor que possas...
Nós cá te esperamos no mundo de todos os dias :)
Nanda

Eva disse...

Antes este paraíso, mesmo com trovões, do que o mundo que me espera.... Estou sem vontadinha nenhuma, Nanda.... E agora aqui fora o céu está soberbo, tão, mas tão estrelado e enorme e dum silêncio cheio de paz... Só mesmo para me custar mais despedir, só pode!! buaaaaa