"E outra coisa: isto que eu vi não é nada, mas, em contrapartida, é muito aquilo que entrevi e o que entrevi foi o risco de perder tudo. O Robledo não interessa. No fundo é um frívolo que nunca chegaria a interessar-lhe. A menos que eu não a conheça de todo. Bom, conhece-la-ei? O Robledo não interessa. Mas e os outros, todos os outros do mundo? Se um homem jovem a faz rir, quantos poderão enamorá-la? Se um dia ela me perder (a sua única inimiga será a morte, a maliciosa morte que nos tem marcados), teria a vida inteira, teria o tempo nas suas mãos, teria o seu coração, que será sempre novo, generoso, esplêndido. Mas se um dia eu a perder (o meu único inimigo é o Homem, o Homem que está em todas as esquinas do mundo, o homem que é jovem e forte e promissor), perderia com ela a última oportunidade de viver, a última respiração do tempo, porque se é certo que o meu coração agora se sente generoso, alegre renovado, sem ela voltaria a ser um coração definitivamente envelhecido.
(...) Levava comigo um vergonhoso temor do seu silêncio, sobretudo porque sabia de antemão que ainda que ela nada me dissesse, eu não iria investigar nem perguntar nem reprovar. (...) Creio que a minha mão tremia quando rodei a chave na fechadura. «Porque é que chegaste tão tarde?», gritou da cozinha. «Estava à tua espera para te contar a última loucura do Robledo, que tipo, aquele! Há anos que não me ria tanto!» E apareceu na sala de estar com o seu avental, a sua saia verde, a sua camisola preta, os seus olhos limpos, cálidos, sinceros. Nunca poderá saber do que me estava a salvar com aquelas palavras."
Mario Benedetti, in "A Trégua"
[Nunca vi os olhos limpos, cálidos, sinceros, que me salvassem. Essa segurança de estarmos do outro lado dos olhos, do que dizem ser o espelho da alma, e vermo-nos nesse espelho, nas palavras, no cuidar, no importar-se, no querer saber e às vezes ter medo de saber, por ter medo de um dia acordar com um coração ressequido e morto, ainda que a bater. O ciúme é o medo de perder o nosso lugar na alma do outro, de termos de voltar sozinhos para a nossa alma, que o alberga ainda. O ciúme é o medo de quem ama, descobrir amar sozinho. É o medo que alguém veja o que nós vemos quando olhamos para quem amamos, e que quem amamos veja noutra pessoa o que não vê em nós, e gostem, e queiram. E por isso às vezes trememos, quando rodamos a chave na fechadura, quando começamos uma conversa que tememos o que nos revelará, quando ouvimos o que preferíamos não perceber. A única coisa que nos pode salvar são os olhares que nos abraçam, que nos fazem sentir a alma em casa, que nos afastam as nuvens da insegurança, do medo. É o que nos dizem os olhos que nos pode salvar. E às vezes nem isso.]
Boa Noite
5 comentários:
Os olhos e a " necessidade imperiosa" de se dizer tudo tudo completamente,
de abrir a alma, deixar fluir livremente as emoções, os pensamentos,
até as mais caricatas tontices...
Gostei de ler o livro. "Senti-identifiquei me" em várias passagens da história,
nomeadamente nesta absolutamente pura intimidade
que é simplesmente básica para uma relação estável.
Love forever :)
Nanda
:)
Quando há intimidade e cumplicidade os olhos conversam muito essas coisas imperiosas de se dizer...
Eu gostei do livro, sim. E identifiquei-me com algumas coisas, algumas que encontrei lá escritas já as tinha dito a certas pessoas em determinadas alturas, e curiosamente antevi logo o desfecho do livro.
Beijinhos
Eu não antevi o inesperado desfecho.
"Naaaaão!! foi o que mentalmente gritei.
Não estava a espera desse fim
e o que mais me marcou foi ele ter finalmente decidido casar
com ela e imediatamente a seguir ser tarde demais...
Bolas. Não é justo.
nanda
Desculpa Evinha... se calhar mandei duas vezes o mesmo comentario.
Nao tenho a certeza.
Beijinhos
nanda
:) sim, estava duplicado, mas aqui só é publicado o que se escolhe publicar, eliminei o outro, no problem, Nanda ;)
Pois eu antevi... Aliás quando ele diz que o único inimigo dela seria a morte e o dele todos os homens... Vi nisso o indício. E tanta hesitação, tanto medo dele, fez-me antecipar isso, ele ia arrepender-se porque não temos todo o tempo que pensamos seguro ter. Nada é seguro, por isso temos de agarrar o que queremos com unhas e dentes, aproveitar o que gostamos enquanto podemos.
A vida não é justa, não.
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