Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

29 junho 2015


Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

Luis Filipe Parrado, in Entre a Carne e o Osso

Muito, muito, BOM.
Li e adorei, encaixou-me na alma tão perfeitamente, como o amargo da doçura, e o doce da amargura (que conheço bem demais).

[É mesmo isto, e é isto que dá este sabor amargo do viver, que de tão doce não se esquece. Talvez quem nunca trincou com ganas a casca saiba o que é isso do doce sabor do amargo que os dentes rasgam, arrancam, sofrem, mas bebem de doce. Talvez nem todos tenhamos dentes e unhas para arrancar o que é nosso dos sonhos para as mãos, para a boca, e ao mesmo tempo arriscar a fome. Talvez nem todos queiram alguma vez tanto uma coisa que a arranquem com vontade no sangue e nos gestos, com a força das convicções quase selvagens, quase impregnadas de instinto, não de sobrevivência, mas de Vida, arriscando unhas, dentes, sonhos, dias, noites, anos - vida. Arriscando tudo. Porque a faca de cabo preto, descasca sempre, mas não amarga e não adoça - o sumo não é o mesmo. Também não o é a dor, o medo e a amargura, ou não sabe ao mesmo. E o que interessa é ao que nos sabe, toda a gente sabe.
Talvez se pudessem avaliar as pessoas que padecem de instinto de vida pelos dentes e pelas unhas, talvez devesse haver uma maneira de se saber da cepa de quem nos toma os sonhos antes de lhes sucumbirmos com unhas e dentes, com dias, noites e anos - com a vida toda. Talvez devêssemos espreitar as gavetas: onde a faca faltar, é usada. Talvez devamos atentar no cabo do mero utensílio, onde exibam a faca e a sua qualidade, como artigo de (e em) si mesmo, onde isso importe e se cultive, se trate e se retrate, ela não só (mal) descasca, como se sobrepõe a todo o descascar da laranja, ao trincar, ao sumo que nos escorre pelo queixo, pelos dedos, pelas mãos, de quem a trinca e se lambuza. Na vida, só quem usa unhas e dentes se lambuza. E sabe como isso pode ser amargo.]

 

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