Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

10 agosto 2015

Há muitos anos que me sento aqui, nesta varanda, onde o céu aparece recortado, emoldurado entre as paredes  dos prédios que parecem fechá-lo, e ao mesmo tempo protegê-lo, cingi-lo, quase num abraço. É um pedaço de céu, mas não é céu com toda a propriedade e extensão, ainda que o seja, que seja da mesma matéria do outro que se perde de vista. A nossa vista é que muda - a nossa vista é que muda sempre tudo. Escrevo isto e dou-me conta que com as pessoas é o mesmo, às vezes esquecemo-nos que a parte pequena que vemos é parte do todo - que há um todo. A matéria de que somos feitos é só uma, mas é preciso saber ver, quando nos cingem num quase abraço ou quando nos dão largas a toda a imensidão da alma. Quando nos dão rédea solta para sermos o que somos, com toda a propriedade e extensão. Tudo é, talvez, uma questão de saber ver, e, na essência, querer ver. E este céu, que aqui vejo numa moldura de arestas incertas e travessas, já o conheço, e por isso noto que está diferente. Este céu, visto neste sítio particular, costuma ser doce, costuma ter a cor do algodão doce, daquele que povoa a minha infância e que é pintado em cor de rosa menina. Hoje não é de menina a sua cor, tem a cor de negro esbatido, vêem-se, perdidas, apenas duas ou três estrelas mais afoitas. Mas daquele rosa que me fazia sorrir e lembrar de algodão doce, só há vestígios na memória. Hoje não há reflexos rosa na neblina, as luzes mudaram, ou a neblina dissipou-se demais. Às vezes há coisas que nos fazem dissipar as ideias doces, às vezes começamos a ter na boca demasiado tempo o sabor amargo das tantas tortuosidades do caminho para nos conseguirmos lembrar daquela nuvem que se derrete na boca, que é feita de açúcar, sorrisos quentes e sonhos mágicos. Quando os engolimos ficamos doces e desaparecem, fica só a ideia deles e o calor das memórias, se a boca não nos amargar demasiado com a vida. Olho para o céu e fecho os olhos para os abrir para a memória, para ver por dentro do que vivi e me ficou, vejo um céu fofo, parece de algodão, e pela cor é doce. Dou por mim a pensar que em crianças nos deram a todos esse pedaço de algodão doce, mas demorámos a perceber que não era um pedaço: era o todo. E agora andamos a vida toda à procura do resto, da doçura a perder de vista. E muitos há que se perdem, outros esqueceram ao que sabe, outros desistiram de procurar esse açúcar que derrete na boca e nos engole de magia. Outros olham para o céu e perguntam por ele, na esperança disso querer dizer que não desistiram, e que o travo amargo da vida não os trava nessa procura tão inglória quanto mágica e incerta. Mas, parece-me, que já que nos podemos perder, ao menos que seja na busca de algo que faça sentido ser doce e mágico... E que não tenha sentido nenhum, como olhar o céu e faltar-nos na boca algodão doce. Cor de rosa menina.

Boa noite

2 comentários:

Filipa disse...

Bolas Eva, este texto está maravilhoso. Acho que quando se lê coisas destas, que sabe tão bem ler, também é uma forma de "açúcar que derrete na boca e nos engole de magia".
Obrigada, pelos pedaços de algodão doce que aqui recebo em forma de escrita. Cor de rosa menina.
Boa tarde, Eva.

Eva disse...

Doce Filipa,
Obrigada. :)
Os teus comentários são sempre cor de rosa menina...tão bons.
Há tempo demais que ando arredada das magias que nos derretem na boca e nos engolem inteiras, mas ontem aqui sentada saiu-me isto... Ainda bem que há quem tenha gosto em ler!
Beijinhos