Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

06 maio 2014

"Seriam também as gotas de água no rosto de Olvido e a sua mão esquerda deslizando pelo corrimão da escada a caminho do quarto, o estalido do chão de madeira, a alcatifa onde ela prendeu o salto do sapato, o enorme espelho à direita onde a viu olhar-se de esguelha ao passar, as gravuras nas paredes do corredor, a luz tênue e amarelada que entrava pela janela quando, diante da grande cama do quarto, depois de se livraram dos casacos molhados, ele lhe levantou devagarinho o vestido até às ancas enquanto ela, na penumbra, o olhava nos olhos com uma intensidade fixa e impassível, apenas com metade do rosto iluminado, bela como um sonho. Nesse momento, Faulques sentiu uma alegria no coração - um gozo simultaneamente tranquilo e selvagem - por não o terem matado em nenhuma das vezes em que isso teria sido possível; porque, nesse caso, não estaria ali nessa noite, despindo as ancas de Olvido, e nunca a teria visto retroceder, reclinando-se na cama, sobre a colcha intacta, sem deixar de o olhar por entre o cabelo solto e molhado de neve que se lhe derramava sobre a cara, com a saia subida até à cintura, abrindo devagar as pernas com uma mistura deliberada de submissão e desafio impudico, enquanto ele, ainda impecavelmente vestido, se ajoelhava diante dela e aproximava a boca, intumescida pelo frio da noite, da escura convergência daquelas coxas longas e perfeitas, em cujo centro pulsava cálida, suavíssima, deliciosamente húmida ao contacto dos seus lábios e da sua língua, a carne esplêndida da mulher que amava."

Pérez-Reverte, in O Pintor de Batalhas

Das descrições mais bonitas que tenho lido: a memória de todos pormenores que guardou; o agradecimento por estar vivo para poder viver o momento que dava sentido, sem qualquer dúvida, a não ter morrido ainda, como se só por isso tudo tivesse valido a pena; o próprio gesto de devagarinho lhe levantar o vestido, e aquelas últimas palavras: "a carne esplêndida da mulher que amava". Lindo. Quero um dia chegar a casa assim, um dia quero ter isto com alguém. Se existir. É lindo.

[...é triste quando acabamos um livro que nos traz presos. Acabou, e fica aqui (de novo) a passagem, para mim, mais bonita dum livro que faz pensar, que nos obriga a reflectir no lado mais maligno do ser humano, talvez do lado menos humano. Ia a escrever mais obscuro, mas como o próprio livro parece explicar, esse lado não é obscuro, nem escondido, é transparente quando a situação é a certa para isso. No fundo é a guerra que mostra a Humanidade mais crua do ser humano, ou a falta dela; mesmo que todos, à partida, também possam amar assim. Como se ama nesta passagem transcrita. E matar de forma simétrica. Simetrias: beleza e horror, as componentes dum equilíbrio caótico e indecifrável. A humanidade, o Amor, a guerra.
E agora, dormir como?  Como fechar os olhos?]

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