Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

06 março 2012

"Mas se te fiz bem, não foi por querer; calhou ter sido assim. Ainda que não me desagrade a ideia de que alguém me recorde como a um felino pousado nos joelhos, quieto, distraído de tudo, concentrado apenas nos arrepios que certos afagos transmitem à coluna vertebral. Mas devias saber que esse não sou eu; que a sinceridade dos meus sentimentos é uma coisa passageira; que o tempo havia de me levar para longe de ti; que acabaria por te causar dano se continuasses a recordar-me assim (...)"
(...)
Mas não posso já aninhar-me no teu colo e a verdade é que mesmo tu, tenho a certeza, não me recordas já assim. Só se fosses parva e preferisses enganar-te, perseverando em não querer entender quem eu sou. O melhor para ti é que duvides até da sinceridade do meu amor, que tenhas a certeza de que era falso; que não saibas já se eu alguma vez deitei a cabeça nos teus joelhos ou se apenas sonhaste se assim foi. É preferível que não te iludas, que não esperes que tudo venha a ser como então, como se nada houvesse sucedido e eu não fosse o canalha que não quiseste ver em mim. Será melhor assim."
(...)
"Tenho saudades tuas e olho a Lua para saber como estás e penso se ainda te recordarás de mim do mesmo modo; se ainda serei a cabeça pousada nos teus joelhos, quieta, calma, pela qual não te parecia possível passar qualquer maldade. Eu avisei-te: sou um louco. Alguém em quem não se pode confiar, do qual de deve esperar tudo, o pior possível. Tinha-to dito tanta vez, antes disso, com os olhos; disse-o, tenho a certeza, e só não me ouviste porque não e quiseste escutar. talvez precisasses que as minhas palavras confirmassem aquilo que os meus olhos diziam. Foi isso? E nesse caso de quem foi a culpa por termos feito tanto caminho?"
(...)
"Eu amo-te, tu amas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e sofro eu também, porque tem mesmo de ser assim e não pode ser doutra maneira. E, se calhar, tinhas razão - o amor é para os parvos. Para os que não sabem apaixonar-se e não têm tempo a perder com sofrimento. Para os que estão sempre se passagem e precisam de um lugar onde encontrem, de vez em quando, um par de cuecas limpas, peúgas lavadas e três camisas engomadas. Um sítio do qual possam dizer: esta é a minha casa, esta é a minha mulher, esta é a minha escova de dentes e estes os meus filhos, a herança que deixo ao mundo (...) "
(...)
"-A minha anatomia enlouqueceu; sou toda coração.
Pois é como me sinto, mais ou menos assim, com a anatomia enlouquecida, sem saber já quais são os meus dentes ou qual a minha boca; como se cada pedaço meu não fosse mais do que saudade de ti: o desejo de te voltar a ver, de te cobrir outra vez de beijos - olhos, boca, rosto, o corpo todo de beijos -, de te abraçar e sentir o teu cheiro, de tomar nas mãos o ramo crespo dos teus cabelos e inalar a fragrância do teu pescoço. Possuo agora, em mim apenas apenas, nos limites da minha topografia, toda a exaltação dos nossos corpos e sinto que não chego para tanto porque a soma de nós dois excedeu sempre a soma física dos nossos corpos. É como se rebentasse por dentro e tivesse de esticar a alma (...)
(...)
"Lembras-te?
O meu cabelo já não é uma escova mole. Não te direi sequer, como então, que a sinceridade dos meus sentimentos é uma coisa passageira. Apenas que ainda me agrada a ideia de ser recordado assim. Que ainda sou, se me quiseres, o teu
- Piú grande amore del mondo.
Lembras-te?
O meu cabelo já não é uma escova mole. Mas eu sou um velho parvo, amor."

in O Amor é para os parvos, Manuel Jorge Marmelo


Leiam. Vale a pena. 
E pensem. Pensem afinal quem é parvo. Se será achar que o amor é pouca coisa e que tudo desagua na indiferença, no passageiro, ou depois passar a vida inteira a recordar o que se teve e se deixou escapar, porque afinal, não era passageiro, afinal os olhos falavam mais e melhor. Afinal não devíamos ter convencido o outro do contrário. O que uns vêem  e pressentem em instantes, outros levam a vida inteira de sofrimento para concluir. O pior é que não sofrem sozinhos.
Leiam, (e) não sejam parvos...