Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

03 setembro 2014


All are tales of human failing
All are tales of love at heart
                           
             Every Story is a Love Story


do Musical "Aida"

[era bom que na vida também assim fosse, tudo fosse do coração. verdadeiro. até os grandes falhanços. não há nada como as coisas cruas, genuínas verdadeiras. só se pode ser genuinamente infeliz depois de se ter sido terrivelmente feliz, de ter sentido a felicidade crua, verdadeira, um pouco selvagem até. Só o que é natural é selvagem. ]

"nos dias que correm, cada vez mais imediatos, partilhados e padronizados, a tendência é para o afunilamento de padrões. uns são nerds dos computadores, outros são intelectuais das letras, outros fito-desportisto-atletas. há ainda os viajantes profissionais, os preguiçosos intencionais, os mil fashionistas, os swagger's emprestados e os novos ginlovers. para mim, não passam de uma cambada de ovelhas que seguem todas o mesmo caminho, todas com a mesma lã, a mesma cor, o mesmo gosto. cansam-me. porque o que gosto mesmo são dos outros, dos que mantêm o que são, seja qual for a moda. daqueles que tem um toque que é a sua marca. não é só o que são, como são, ou como vivem, mas aquele toque especial que lhes dá uma piada única, ou um estilo próprio, ou até mesmo aquela irritação boa, quase de estimação. porque as pessoas verdadeiramente interessantes tem um toque que se adivinha, que se percebe, que se antecipa. um toque que não se vê, que não se consegue descrever, mas que se sente..
gosto daquelas pessoas que tem sempre o seu estilo, estejam na festa mais deslumbrante, ou apenas caídos, ali na relva de um jardim. as que dançam a música, não por quem canta, mas pelo que canta. que sabem conversar horas, de todos os assuntos, mas sem nunca se levarem muito a sério. que são bonitas, não pelo que exibem, mas pelo que guardam em si. e, gosto ainda mais das que sabem reconhecer - e apreciar - esse toque nos outros. porque não há nada que me deixe mais feliz, do quando me dizem 'vê-se logo que foste tu que fizeste', ou 'tinhas de ser tu a descobrir isso'. e isto, não é porque somos melhores ou únicos. é o contrário, é mesmo na nossa imperfeição, nos nossos defeitos, termos sempre um vinco que deixa a nossa marca boa. seja a forma de rir quando estamos a dizer parvoíce, ou a forma de abraçar quando dizemos que gostamos, até a forma de ocultar (por carinho), quando fugimos aos problemas. ou aquela forma de cuidar, sempre atenta aos pequenos sinais, cheia de pequenos gestos que se tornam grandes, pela simples forma se saber estar: presente.
hoje, sei que o que distingue os grandes amores é a sintonia nestes pequenos toques, que fazem do mais normal dos dias, um momento sempre especial. é saber que se tem uma pessoa bonita e especial à nossa frente, mas que são os grandes detalhes que a fazem nossa paixão. coisas simples, como a forma de tomar café, ali meio a cair do balcão entre pernas encruzadas, seja em que casa for. ou ir às compras, e fazer sempre daquilo uma diversão, seja na loja mais in, ou no supermercado mais out. é haver sempre uma musica nova que é tão nossa, seja de quem for. é o cheiro da pele fresca da manhã, sempre familiar, seja em que banho for. é a forma como adormeces no meu peito, seja em que cama for. é o brilho do olhar no outro, que se reconhece quando está feliz, seja a que distância for. e sabes, é o nosso toque, que nos deu esta forma tão improvável de sermos iguais. porque somos almas que vivem da mesma forma: entregue. não apenas ao outro, mas ao tanto que sabemos que vamos viver com o outro.."


...haja alguma coisa que descubra gostar cada vez mais... quero muito acreditar nisto que estes textos transmitem, este toque, esta essência, que seja realidade para alguém, que me façam acreditar que é possível.... que ainda é possível. Que este toque de vida na vida ainda me é possível. Que um dia ainda vou respirar vida pelos poros. Todos. 

Bom Dia
"Carnuda, somente carnuda. Mas que tonta. Depois querem que uma pessoa acredite na existência de Deus. Como é que uma mulher pode ser tão cheiinha, tão perfeita, com aquele busto, com aquela boca, e sem cérebro? Seria necessário pôr-lhe um a transístores. Ou devolvê-la a Deus, como falha de fábrica. De qualquer modo, o baboso do noivo não há-de manusear-lhe precisamente o cérebro.
 - Vou comer no centro, menina, por isso estarei de volta pelas duas.
- Lembra-se que às três marcou com o senhor Rios?
Como fará para ter memória, se não tem cérebro? Terá a memória instalada no busto? Lugar há, de sobra. Ali poderia ter a memória, o estômago, os meniscos, o pâncreas, tudo.

(...)

(...)quero que tenhas uma recordação criada por mim, algo a que possas agarrar-te; para mim é insuportável que tenhas perdido a tua mãe, que odeies o teu pai, que te sintas distante do Gustavo, que não possas comunicar com a Susana e que de vez em quando sonhes comigo; creio que tens direito a sentir-te, uma vez pelo menos, em consonância com as tuas emoções, com a tua vida; creio que tens o direito de te sentires pleno; confesso-te que para mim foi uma verdadeira crise; mas de repente vi claramente, vi que a morte está sempre a vingar-se das nossas vacilações; a nossa vida compõe-se de três etapas: vacilar, vacilar e morrer; a morte, em troca, não vacila diante de nós; mata-nos e acabou-se; e o grande espião, o formidável quinto pilar que a morte instalou em nós, chama-se escrúpulo; já sei, eu tenho escrúpulo, tu também, compreende que não estou contra o escrúpulo; mas é o quinto pilar da morte; porque graças ao escrúpulo, vacilamos, e passa-nos o tempo de gozar, de gozar esse minuto feliz que, como graça especial, foi incluído no nosso programa; passamos toda a vida a sonhar com desejos incumpridos, recordando cicatrizes, construindo artificial e mentirosamente o que podíamos ter sido; constantemente estamos a travar-nos, a conter-nos constantemente, estamos a enganar e a enganar-nos; cada vez somos menos verdadeiros, mais hipócritas; cada vez temos mais vergonha da nossa verdade (...)

(...)

-Está bem Dolores.
-Não me olhes assim.
-Olho-te como sempre.
-Não, não é como sempre. Olhas-me como...
-Como quê?
-Como um derrotado.
-É que sou um derrotado, não sabias?
-Prometes-me uma coisa?
-Não, Dolores, não te prometo nada.
Porque fica ali, junto à cancela, enquanto faço lentamente marcha atrás? Que se vá embora, que entre de uma vez por todas em casa. Com dificuldade posso suportar o vestido branco, mas não aquelas sandálias, não aquele colar, não aqueles brincos de molas, os mesmos que uma vez lhe fui tirando, que continuo a tirar-lhe, acordado ou a dormir, sempre. Porque te tenho e não*. Já não te tenho. Definitivamente não. Que se vá embora. Que desapareça. Que se feche. Que se esconda a chorar. Eu não me escondo.

(...)

Daí que a tremenda satisfação sexual com que me brindou a única união com Dolores seja, sobretudo, um derivado daquela comoção prévia. Olha-me, e o seu olhar não é sexo, mas profundidade, tristeza, palpável socorro. Todavia, o seu olhar e o seu sorriso, ao apanhar-me, espremem o meu coração, aceleram-no, lançam-no, e uma vez que o meu coração é lançado a amar, a urgir, a necessitar, submete-se ao sexo, e este passa a proceder como mera filial orgânica e os seus modos de amor deixam de ser os próprios para se transformarem em subsidiários dos modos de amor do coração. Ou seja, o meu tipo sexual pode ser, por exemplo, uma mulher de pernas bem torneadas, cabelo escuro, olhos verdes, mãos delgadas, ancas tangíveis, mas quando o olhar e o sorriso decisivos me alcançam e fulminam, o resto já não importa e a partir desse instante o meu sexo só se encontrará satisfeito na assunção desse corpo que me olhou e sorriu, (...) a minha sentença contra o Velho, tenha sobrevivido a partir do convencimento, a partir do vislumbre de que ela não ia aceitar, porque a esta altura talvez me seja insuportável estar livre sem ela, inocente e sem ela. Talvez eu esteja a engendrar urgentemente uma grande culpa, um absorvente remorso, só para cobrir uma ausência, para justificar a minha solidão.

(...)

Anos antes já o tinha intuído, mas só agora o confirmo: quando se deseja uma mulher, só se conhece metade do próprio desejo. O desejo completo sobrevem no instante em que se tem consciência de que também a mulher nos deseja. Então sim a pressão torna-se insuportável.
-Vamos?
Aqui estive com Dolores. Porque faço isto? Será que no fundo quero comparar? Ou talvez tente apagá-la, acabar com a sua imagem? (...) Quando o acto é de união total, como com Dolores, não exijo nada; não exijo nada, simplesmente, porque está tudo."

Mario Benedetti, in Obrigada pelo lume.

[o prometido é devido, aqui ficam os últimos excertos do livro que acabei há dias, os que me fizeram marcar as páginas porque me fizeram parar para reler, ou só rir-me com o sentido de humor deste escritor que vai sendo salpicado pelo livro.  eu sou das que acho que o sentido de humor oportuno fica bem em todo lado, mesmo no meio de assuntos sérios que me fazem parar para pensar, identificar-me tanto que sorrio por falarem por mim o que sinto, concordar ou não, transpor, estabelecer paralelismos ou não, pôr-me a mim e outros naqueles pensamentos, tentar perceber chegar a algumas conclusões, tentar entender melhor o que nos faz seres humanos, e a diversidade enorme que há dentro do comum do amor, do que se sente, do que se sofre e pensa. Gostei.
(Não concordo totalmente com o escrúpulo, acho que o quinto pilar da morte - para usar as palavras de Benedetti - é o medo. O escrúpulo serve para nos travar e pensar melhor, ponderar onde nós começamos e acabam os outros, mas não nos impede obrigatoriamente, se impede é porque quebra as nossas próprias normas, e escrupulo é um conceito muito mais social que pessoal, e então na perspectiva social não é mais do que uma mera desculpa.)]

*parte dum poema de Mario Benedetti que está de certeza algures neste blog, em espanhol, e que no livro aparece traduzido (não fui buscar o post por preguiça, sorry, talvez noutro dia o faça...)