Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

29 março 2015


..."tira a mão do queixo, não penses mais nisso"... Canta Jorge Palma e tem razão. Aproveita os últimos raios de sol. O sol que descobre os ombros como gostas. O sol que aquece a pele por fora. Esquece o sol que falta para descobrir os ombros da alma, o sol que falta para à tirar da sombra das lágrimas que ficaram por chorar. Chora-se por dentro o que por fora não se diz e pelo que nunca se devia ter dito.
O café amargo, bem mais doce que a vida dormente de que não se desperta, é para beber e já chegou. ..."tira a mao do queixo e não penses mais nisso"... Que ninguém mais pensa, e a vida é coisa de viver e fazer, não de pensar ou pensar em fazer. 

... De manhã olho o espelho e pergunto-me se é ele que tem raiva de mim e me devolve assim, se sou eu que tenho raiva dele por eu ser assim. Mas a raiva é indiscutível. Como a raiva que não me deixou calçar durante meses umas botas que voltei a calçar há dias, não sei porquê, calcei-as, talvez as tenha visto de maneira diferente. Quando de madrugada as descalcei foi outra vez com raiva, muita. E essa raiva não descalcei, e vi tudo outra vez da mesma forma. 
Não há condescendências: a raiva também alimenta, mesmo que envenene os dias.
separou-se
foi demasiado longe na sua solidão
e soube – teve de saber –
que dali não se regressa

afastou-se – afastei-me –
não por desprezo (claro está que o nosso orgulho é infernal)
mas porque uma pessoa é estrangeira
uma pessoa é de outra parte,
eles casam-se,
procriam,
veraneiam,
têm horários,
não se assustam com a tenebrosa
ambiguidade da linguagem
(Não é o mesmo dizer Boa noite que dizer Boa noite)

Alejandra Pizarnik
(Tradução de Miguel Filipe M.)


[há solidões de que não se regressa, mágoas que não se curam, desilusões de que não se recupera, perde-se a esperança e a crença. A distância aumenta ainda que não nos mexamos, que não saiamos do mesmo sitio. Há algo que sai de nós sem pedir licença, sem aviso, sem cerimónia - abandona-nos. Às vezes sai e bate a porta com estrondo, outras de mansinho. Nem sempre é fácil saber se realmente saiu, que já não nos habita - às vezes parece que sim, outras descobrimos que não, que ainda cá temos tudo despedaçado à espera de ser colado. Uma coisa sabe-se, dói, porque a distância que aumenta é a ferida que abre, que rasga, por onde nos esvaímos. E deixamos. Mas às vezes é a purga que cura. Às vezes, outras só nos esvaímos. Somos estrangeiros de outras longínquas fronteiras, a língua que falamos ninguém entende, o que sentimos sem fronteiras não é pátria de ninguém. Os outros passeiam,  riem, falam, estanques, parece que vivem. Dentro das suas fronteiras seguras, confortáveis e estéreis, o que não sentem - onde todos estão -  não é casa de ninguém.]

Boa noite