Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

09 janeiro 2015

[Foto de Rune Hartvigsen]

Às vezes as palavras desaparecem-me, perdem-se de mim, ou eu perco-me a caminho delas. 
Às vezes o tempo de repente pára, e eu apercebo-me porque percebo que deixo de respirar, ou melhor, percebo que é preciso respirar. Percebo que há coisas inatas que às vezes têm de ser pensadas, como respirar.
Às vezes as palavras desaparecem-me quando o tempo pára, e eu percebo que parar essa inércia do tempo, que me leva na corrente dos dias, sem um dia que se preze de ser "um dia, aquele dia, aquele sorriso, aquele momento", me faz cair em queda livre para dentro de mim. Faz-me mergulhar no buraco negro em que os dias que correm parados me fizeram. E posso mergulhar sem perigo de me despedaçar de encontro ao chão, nem tanto por nada restar para despedaçar, mas porque ainda não o encontrei. Ou sequer avistei.
Às vezes dou por mim numa tristeza imensa em que me podia afogar, e nessas alturas aprendi a assobiar baixinho para o lado: trocar a tristeza por trabalho, por coisas que me arranjo para respirar sem perceber, livros que me entretêm as letras que me fogem, ou de que quero escapar, quem sabe? Agarro-me, com a réstia de unhas que tenho na espinha, ao que quero de mim, para não me deixar ser o que não sou, nem quero ser. Nunca. Ainda menos agora. Não quero raiva, não quero ódio. Ainda que me acenem cada vez mais a cada anoitecer, a cada amanhecer que fica prometido sem nunca se cumprir um novo dia: um dia, aquele dia, aquele sorriso, o momento em que o dia amanhece, seja qual for a hora. Aquele momento que faz os dias não precisarem de calendário para serem lembrados. Nesse calendário onde havia dias em que eu ainda sentia. Agora não sinto nada, e as palavras fogem-me talvez por isso. Desapareci das palavras e do tempo. Desapareci. Desapareci-me. E não me sinto a falta. Nem eu, nem ninguém. 
Às vezes não tenho saudades, não por ter tudo, mas por perceber que não tive nada do tudo a que me dei. Só tive o que dei, nada mais. E disso não tenho saudades, porque é meu, trago-o vestido por dentro da pele que me veste, mesmo quando o tempo pára e me leva as palavras que não quero que me falem de saudades. 
Às vezes as coisas têm de ser esquecidas, como ter aprendido que amar é inato e que respirar é preciso. Às vezes.