Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

23 setembro 2014


... Mais um fim de dia, despedirmo-nos dos dias às vezes custa, mas quando as despedidas custam é porque o que as antecede é bom e deixa saudades. O mau é isso ficar atrás, no passado, e termos de continuar para a frente com esse peso das saudades que aumenta com o tempo que passa. Tenho tido nos últimos tempos demasiadas despedidas, mas não tenho como evitá-las. Tenho só que saber como fazer para as saudades não pesarem, aprender a lidar com as recordações sem o peso de se conjugarem no passado, mas apenas sinal de que se viveu e foi bom. Não as deixar morrer, as que valem a pena viverem em nós, mas não nos pesarem. Serem uma luz para o futuro, como a beleza desta luz que vejo agora neste céu a espreitar por entre as nuvens negras com uma luz quente e doce.

Eu e o Cortazar a meus pés enquanto fumo um cigarro e oiço chover. De volta ao cadeirão e à manta. No outro dia a experimentar umas aplicações novas de fotografia dei por mim a brincar com fotos minhas que ia tirando sem luz que não das velas que estavam acesas, e ponho-me a olhar e a pensar que raio de esquizofrenia será a minha de olhar as fotos e não me reconhecer, a sensação estranha de ver por fora o que os outros vêem, e chegar à conclusão que nao me reconheço muito na minha cara, à excepção dos olhos que me parecem familiares do que sinto por dentro do que forra o que por fora me parece estrangeiro. E isso é estranho. E hoje duma dessas fotos diziam-me "olhar doce, profundo e tranquilo". E eu fiquei a pensar nisso. Qual é a parte estrangeira de mim? O que se vê e não se vê. Como se vê o que não se vê? Quem aqui me lê, sem se me ver mas sabendo-me mais do que qualquer fotografia do meu focinho pode dar a saber, como me verá? E eu como me vejo, que quando me vejo não me pareço eu mas também não sei como deveria parecer para me parecer eu? Se calhar assim? O olhar sim, é a ligação de vários mundos que me fazem, que me habitam, ou eu a eles, isso reconheço como meu, o resto não sei, é estranho. Será uma esquizofrenia como outra qualquer.
E agora chove. Bem





"Vejo aquilo que não sou. Por exemplo (isto volto à explicá-lo, mas vem da mesma ideia): existem zonas enormes às quais jamais cheguei, e aquilo que não se conheceu é aquilo que não se é.

(...)

Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.(...) Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."

Julio Cortazar, in O Jogo do Mundo (Rayuela)

[sim, há coisas que se pudéssemos imaginar antes de as sabermos as imaginaríamos exactamente como viriam a ser. Ou assim achamos. Como tentar imaginar a perfeição. Tentar agora imaginar a perfeição é reproduzir com retoques o melhor de tudo o que se conhece. Quando a vida nos surpreende a imaginação explode, conquista territórios desconhecidos que não sabíamos existir, e todo um novo mundo se abre. Novas imaginações, perfeições mais perfeitas. Novos limites e novas dimensões de felicidade. E novas dimensões de infelicidade, por perdê-las, por desperdiçá-las, o que for. Aquilo que não se conhece é aquilo que não se é, mas aquilo que passamos a conhecer passa a ser parte do que somos, e de como descodificamos a loucura do mundo. Renegar isso não é não andar para a frente é andar para trás. Nada volta ao que era. Passamos a ser pessoas diferentes quando os nossos limites de imaginação, felicidade e infelicidade se movem. O mundo altera-se, nunca mais o vemos da mesma forma mesmo que nada tenha mudado, a essência alterou-se, a essência do nosso olhar sobre as coisas. E as coisas não são coisas são a maneira como as vemos. Um parafuso pode ser um deus (esta é de outra passagem do livro, mas estou preguiçosa), tudo depende do que vemos. E eu pergunto-me vezes sem conta o que verão quando me olham? ]

(É sacrilégio estar a escrever estas coisas com um texto com a beleza deste, duma boca perfeita que afinal existe. )

Boa noite


...Ouvem-se só as cigarras e o vento a inquietar as folhas, um chocalhar ao longe e a conversa dos cães no fundo, corre uma brisa do lado de fora da manta. O silêncio aqui traz paz, ainda que esteja cheio de ausências. No céu não há estrelas que os olhos alcancem, só um tapete de nuvens que as estrelas pisam lá em cima. Fico-me aqui parada à espera das respostas que estão em mim, são as únicas que podemos ter, são as únicas que são resposta. Por muito que se procurem respostas nos livros, em tudo o que vemos e ouvimos, as únicas respostas para nós estão encerradas dentro de nós. Só às vezes não as queremos, só as vezes nos duvidamos, e isso também são respostas. De que estamos sempre inacabados. Que o tempo corre e ninguém fica imóvel e inalterado. Que  o tempo nos traz incertezas e perguntas, porque estamos sempre a crescer, porque há sempre o desconhecido amanhã, daqui a bocado, agora. Só podemos continuar a crescer enquanto houver desconhecido e perguntas e a tentativa de buscar respostas. 
E eu tenho tantas perguntas... É vários medos para cada uma.