Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

20 fevereiro 2015


"Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?
Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
Meu nome é Caio F.
Moro no segundo andar, 
mas nunca encontrei você na escada. " 

Caio F. Abreu

[preciso, e talvez precise porque conheço. Ou talvez tenha conhecido porque precisava. E nem sabia... Agora sei e conheço e preciso. E podia ser assim - um colo, mas no sofá com a chuva lá fora e a lareira cá dentro. Sei que podia.]





Paradoxo da pele : precisar tanto de ser tocada e não suportar a ideia de alguém me tocar.

Li algures que a pele tem memória, e é verdade, só pode ser verdade - ainda que nem para todos, ou cada um terá a sua memória selectiva, talvez. Tenho esperado a amnésia da pele, o perder o norte dos caminhos que a ponta dos meus dedos percorria de olhos fechados, o desbotar dos trilhos que me sulcaram a memória, que por tantas vezes terem sido percorridos na pele ficaram lá, ainda os sei e quase os sinto. Não fui abençoada com essa amnésia, bem com muitas outras, ao contrário de tanta gente que tão facilmente, tão rapidamente, muda a pele que toca, que nem a ponta dos dedos chega a notar diferença, como se já nada sentissem, ou como se tudo fosse o mesmo - todas as peles, todos os corpos, o mesmo corpo indistinto, que não lhes mergulha na memória, no ser, não invade a casa e a torna sua. Como deve ser triste não ter um rosto de que sentir saudades, como deve ser pobre, em tanta pele não sentir nenhuma como casa. Deve ser uma solidão cheia de gente sem rosto, sem pele com alma, sem ternura para beber na ponta dos dedos. Prefiro a minha solidão cheia de saudades, o meu corpo esculpido de memórias, ainda que anseie pela amnésia que me deixará, pé ante pé, sair da solidão e permitir conhecer novos caminhos, que não fujam de mim e me deixem na saudade da minha pele - de a sentir-, e da pele que não é minha. Que não me levem aquele recanto no meio do peito que reclamei para mim, onde os meus dedos se perdiam na inconsciência de terem chegado a casa, bocadinho que elegi universalmente para mim, e que declararam meu, mas que terá sido tão meu como de toda a gente que não deixou saudades. Que não deixou nada. Bendita amnésia do que não precisa de ser esquecido.

Boa Noite