Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

23 dezembro 2014


Uma pessoa tenta, tenta acreditar naquela coisa do pensa positivo, do bom atrai o bom, aquilo a que eu chamo treta de optimistas, o não querer ver a realidade e substitui-la por uma coisa mais bonitinha e menos amarga, e quando tenta fazer isso percebe que era melhor, muito melhor, a racionalidade dos pessimistas, em que se espera o pior, preparamo-nos para o pior, e talvez a vida não nos consiga arranjar pior que isso, e então lidamos com o que contamos, se tivermos um bocadinho de sorte, com melhor do que o que contávamos. São menos desilusões, menos baldes de realidade amarga pela goela abaixo. Mas eu caí nesse erro, de esperar o melhor, de achar que a vida me daria uma trégua, que me deixaria respirar e restabelecer, que me deixaria voltar a abrir um sorriso sentido antes de me pôr a chorar outra vez, antes de me fazer desabar de novo. E no meio de lágrimas, choradas e por chorar, vem-me à ideia uma frase, completamente fora de contexto, completamente fora do tema que as lágrimas choram, mas de longe a frase sussurra-me perto "se é para tentar tudo, tem de ser tudo, tenho de fazer tudo." É  então que percebo que a vida não é só cruel e péssima de timings, é abusadora e de mau carácter, trai e pisa quem já está no chão, lembra-nos o que queremos esquecer em alturas que só nos apetece fugir. Fugir do sítio para onde vou agora, tenho de ir, é minha obrigação. E só queria um peito onde encostar a cabeça, e uma cabeça para encostar ao meu peito, e esquecer-me que existe vida, cruel, amarga ou o que for, esquecer apenas. Como quem deixa de existir.


“Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. (…) Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. (…) Pretendia apenas lhe contar o meu novo carácter, ou falta de carácter. (…) Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu… em que pese a dura comparação… Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. (…) Uma amiga, um dia desses, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou essa calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos. (…) o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.”

Clarice Lispector | Carta a Tânia - Irmã de Clarice - 1947

[... O nó vital, aquele que não deslaça e enlaça o ser. Não se desfaz às circunstâncias, não se faz pelos outros nem nos outros, prende-nos ao que somos, não nos permite desistirmos de nós mesmos. Depois de nos encontrarmos, de olhos abertos nos vermos, nos sabermos, nada fica como dantes, e o nó aperta ainda mais o nós à consciência do que somos e do que queremos. Descobrimos o nó que nos faz nós. E mais nos prende quanto mais se aprende (de nós). ]

Boa noite