Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

24 maio 2014


" "O quê! Será amor", dizia para consigo. "Estarei apaixonada? Eu, mulher casada? Mas nunca senti por meu marido esta sombria loucura que faz com que não possa deixar de pensar em Julião. No fundo, é apenas uma criança cheia de respeito por mim. Esta loucura será passageira. Que se importa meu marido com os sentimentos que eu possa ter por este rapaz?(...) Nada lhe tiro para dar a Julião."
(...)
Tudo era imprevisto para ela. Contudo, depois de alguns instantes pensou: "basta, portanto, a presença de Julião para apagar todas as suas culpas?" Ficou apavorada; foi nesse momento que lhe retirou a mão.
Os beijos cheios de paixão, diferentes de todos os que recebera, fizeram-na esquecer, de repente, que ele amava, talvez, outra mulher. Pouco depois aos seus olhos já não era culpado. O cessar da dor pungente, vinda da suspeita, a presença de uma felicidade que ela nem sequer nunca sonhara deram-lhe exaltações de amor e de alegria louca. (...) Julião não pensava já na sua negra ambição, nem nos seus projectos tão difíceis de executar. Pela primeira vez na vida era arrastado pelo poder da beleza. Perdido num sonho vago e doce, tão estranho ao seu carácter, apertando devagarinho aquela mão que lhe agradava como uma beleza perfeita, escutava o movimento das folhas da tília, agitadas pela leve brisa da noite, e os cães do moleiro do Doubs, que ladravam ao longe. Mas esta emoção era um prazer e não uma paixão. "

Stendhal, in Vermelho e Negro

Há dois tipos de grandes autores, os que se destacam pela forma como escrevem, ou porque o fazem duma forma diferente e diferenciada, ou porque o tornam na verdadeira arte, dizendo qualquer coisa duma forma sublime, que nos faz parar, pensar, repetir, reler e por fim guardar sorrindo, mesmo que num sorriso triste tantas vezes. Depois temos os outros, os que não têm uma escrita que consideraria excepcional, mas que têm um conhecimento excepcional da psicologia humana, dos sentimentos e emoções mais recônditos, pessoas que criam personagens verdadeiramente reais, complexos, humanos.
Este livro que ando a ler encaixa neste segundo tipo. 
Neste pequeno trecho cabem aqui pormenores imensos do que é paradoxal e irracional, os dilemas internos e os esquemas mentais que tornam tudo inexplicável e expectável no ser humano, no que se sente, ou não se sente, a impotência, a consciência da irracionalidade, o absurdo do que se sabe sentir, e as pequenas diferenças imensas entre, por exemplo, a paixão e o prazer.