Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

28 agosto 2014



... já tantas vezes pensei, disse e escrevi isto... às tantas viro padre...
E realmente eu parece-me que só existo enquanto tiver utilidade, depois é fácil, é descartar e virar costas. Já não sou útil, já não sirvo aos propósitos da agenda do dia.

"Não estou bem seguro de nada. Susana sim deixar-me-ia. E vá, importa-me tanto que Susana me deixe ou não me deixe? A paixão acabou-se, acabou-se de tal forma, que agora não sei se alguma vez existiu, mas a minha memória, não o meu corpo, a minha memória diz que existiu. Pode ser. Quanto ao amor, o amor sem paixão digamos, é um conceito tal abstracto e geral, que se calhar continua a existir, mas sem importar muito. Estou acostumado a ela, à ordem que impõe em casa, ao seu modo frio de dialogar, ao seu estilo um pouco histérico para enfrentar as preocupações, à cara adormecida de sonhos, ao seu riso metálico, aos seus cremes, à sua pele, aos murmúrios, às suas depressões, às suas impertinências, às suas nádegas. Mas costume não é necessidade. Antes precisei dela, agora não. O que se passa então entre ela e eu? Paixão já não, quiçá amor lasso; necessidade já não; quiçá costume. Que palavra pode resumir tudo isso? Carinho? Estima? Apreço? Simpatia? Indiferença? Fastio? Aborrecimento? Raiva? Na realidade eu deixo-me viver. Não vamos investigar demasiado. Nem sequer em mim. Até um míope poderia dar-se conta de que isto não é a felicidade.
(...)
Sim, é quase seguro que a prudência fácil, este continuar como até agora, é quase seguro que isso seja o disparate. Não sou herói nem nada que se pareça. Bastou que Susana não acreditasse que eu falava sério, para que eu mesmo me levasse a brincar. Não estou para piadas, disse, e foi o suficiente para que as minhas palavras me soassem vazias. A verdade é que sei que não vou mudar, que não vou tomar nenhuma decisão abrupta, dramática. Enquanto se trata só de pensamentos, de um simples jogo mental, então sinto-me com ânimo, tenho a impressão de que vou decidir-me, de que vou dar o salto, mas quando chega o momento de criar os factos e enfrentar a sua responsabilidade, então dá-me um medo irracional, um pânico semelhante ao que me assaltava em pequeno (...) Não sei exactamente se é medo à miséria, à insegurança ou ao desprezo dos outros. Talvez seja menos digno que tudo isso. Talvez seja simplesmente medo ao incómodo, à falta de conforto. Porque quando penso que a minha vida é cinzenta, aborrecida e rotineira, não me escapa que a rotina inclui uma série de coisas insignificantes mas agradáveis.
(...)
Pode ser-se feliz junto a uma pessoa frívola, mas desde que se pertença ao mesmo grupo sanguíneo. E Dolly não. Dolly tem vida interior. É profunda quando quer. A sua simpatia baseia-se particularmente no que não diz: silêncios, gestos, olhares, etc. (...) Dolly querida. Vi-a pela primeira vez quando eu já levava dez anos de casado. Era aquilo, claro, o que eu tinha andado à procura, e agora tinha-a Hugo. Casei-me com Susana porque pensei que Aquilo não existia, ou melhor, resignado a que Aquilo não existisse. E, naturalmente, se uma pessoa pensa que Dolly não existe, então Susana parece bem. Mas existe. Por exemplo, agora, ali, no jardinzinho.
(...)
"Bem, agora está claro. Acabaram-se os sonhos. Mas deixa-me às vezes que fale contigo. Sinto que com ninguém, nem sequer quando estou sozinho, estou tão próximo da verdade. Da minha verdade, entendes-me? (...) como é que posso falar com ela, assim, de qualquer coisa, cães, mendigos e Cristina Jorgenssen? Creio que a amo mais, agora que estou seguro de que não acontecerá nada. Porque não a vi antes? Porque é que não levei a melhor ao Hugo? Com ela sim, sentir-me-ia valente. Ou isto será uma boa desculpa para me sentir cobarde?"

Mario Benedetti, in Obrigada pelo lume

[ existir o que não pensávamos existir, sentir o que achávamos só pertencer a telas e a páginas de romances bem escritos, depararmo-nos com o que procurávamos quando já não estávamos à procura, ou à espera. Nada nos prepara para isso, e nada nos salva disso. A conjugação perfeita, o estarmos com o outro como connosco próprios, sem reservas ou medos: inteiros. E a impossibilidade. As razões que se vão acrescendo para validar as cobardias, para as justificar e quase legalizar como quem moraliza. 
O livro não é o que esperava, escreve em prosa tão diferente do que se sente na sua poesia, mas o giro é que se sente a mesma sensibilidade, só não descrita na prosa, apenas através de alguns pequenos pormenores que só os atentos atentam, e a sensibilidade, a humanidade profunda da história, principalmente das reflexões dos personagens, da sua bagagem psicológica, de medos, traumas e desejos. Os personagens são muito humanos, muito frágeis, muito reais, e por isso profundos. E a parte política reflectida como fenômeno sociológico mas também psicológico do indivíduo. Interessante, mas não o que esperava. Ainda assim não me desilude. E isso é bom, e bolas muito raro nos dias que correm... ]
... Ainda não consigo. Ainda me agarram as saudades. Ainda se me colam as recordações a qualquer coisa que veja, que oiça, que cheire, que viva. Ainda te tenho entranhado na vida por viver como na vivida. 
Como é que se pode ter saudades de alguém que não nos ama, e se não nos ama nós não queremos? Como se pode ter saudades do que não foi? E como ter saudades do que não foi? Como se as memórias e as recordações fossem sonhos e nunca realidade, porque a minha realidade não existiu, nunca estiveste nos momentos como eu estive e recordo. São como memórias de contrabando, falsificadas, que comprei com a minha alma, como genuínas, verdadeiras, reais. 
Como agora saudades do passado mentido e do futuro a que não cheguei?
Saudades como? Como?