Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

14 outubro 2012

"...porque era bonita, porventura não a mais bonita entre a assistência feminina, mas bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo sentido último, se é que tal coisa existe num verso, continuamente escapa ao tradutor."

"O camarote estava vazio. Atrasou-se, disse consigo mesmo, deverá estar a ponto de chegar, ainda há pessoas a entrar na sala. Era certo, pedindo desculpa pelo incómodo de fazer levantar os que já estavam sentados os retardatários iam ocupando as suas cadeiras, mas a mulher não apareceu. Talvez no intervalo. Nada. O camarote permaneceu vazio até ao fim da função. Contudo, ainda havia uma esperança razoável, a de que, tendo-lhe sido impossível vir ao espectáculo por motivos que já explicaria, estivesse à sua espera lá fora, na porta dos artistas. Não estava. E como as esperanças têm esse fado que cumprir, nascer umas das outras, por isso é que apesar de tantas decepções, ainda não se acabaram no mundo, poderia ser que ela o aguardasse à entrada do prédio com um sorriso nos lábios e a carta na mão. Aqui a tem, o prometido é devido. Também não estava. O violoncelista entrou em casa como um autómato, dos antigos, dos da primeira geração, daqueles que tinham de pedir licença a uma perna para poderem mover a outra. Empurrou o cão que o viera saudar, largou o violoncelo onde calhou e foi-se estender em cima da cama. Aprende pensava, aprende de uma vez, pedaço de estúpido, portaste-te como um 'perfeito imbecil, puseste os significados que desejavas em palavras que afinal de contas tinham outros sentidos, e mesmo esses não os conheces nem conhecerás, acreditaste em sorrisos que não passavam de meras e deliberadas contracções musculares, esqueceste-te que levas quinhentos anos às costas apesar de caridosamente to haverem recordado, e agora eis-te aí, como um trapo, deitado na cama onde esperavas recebê-la, enquanto ela se está rindo da triste figura que fizeste e da tua incurável parvoíce."

in As Intermitências da Morte, José Saramago

Um dos melhores retratos que me lembro de ter lido ultimamente, ou que mais me impressionou e encaixou, do estado de paixão, do apaixonarmo-nos, de quanta parvoíce se pode fazer e pensar. E isso, da esperança que nasce dela própria, que nasce até, ou apesar, de todas as decepções, e da parvoíce disso também. Tudo parvoíces das boas, das melhores, mas ainda parvoíces. Como dizia alguém "o amor é para os parvos". E eu sou uma parva. E espero continuar a ser, ainda que cada vez mais descrente, ainda que tantas vezes me deixe amargar por momentos, ainda que a vida me aconteça em nódoas negras que vou coleccionando na alma, essa continua à espera que venha alguém e que a faça esquecer de todas elas, e de todas as cicatrizes que não se curam, apenas se aprende a viver com elas, e às vezes, às vezes, conseguimos esquecer-nos delas. Essa é a parvoíce da minha esperança.

[ando muito preguiçosa nas minhas leituras tenho de voltar à carga, agora não sei quem será o senhor que se segue...]