A casa doía-lhe no corpo, nos cotovelos, nos joelhos, nas juntas que não juntavam, que separavam. Mexia-se e lá vinha a casa doer-lhe nas entranhas das peças que não ligavam. Às vezes dançava como quem respira, em harmonia com a vida, outras lembrava-se da vida, desabava-lhe a respiração, e tudo se desarticulava, parecia um boneco articulado desengonçado nas mãos desarticuladas dos dias que não perdoavam. A vida nunca lhe perdoava, e ela muitas vezes desistia de ouvir música, era um desperdício de ouvidos, mexer-se um chamamento arriscado, porque a casa estava em cada esquina de que fugia, mas em que sempre esbarrava, e o corpo queixava-se - doíam-lhe os cotovelos, os joelhos, às vezes até os olhos em protesto do que viam, os ouvidos que não queriam os barulhos da casa por visita; e a música cada vez mais bonita e mais rara, e a harmonia no dançar um êxtase secreto perfeito de duração duvidosa. Às vezes a casa acordava-a a meio da noite e dizia que tinha de ir pôr o cão lá fora, tinha de educar o cão, ensiná-lo a tratar bem da casa, e do jardim, que a casa era tudo o que importava... e ela às vezes interrogava-se se ela também não deveria importar, mas interrompia-se ao ouvir um eco vindo de longe que dizia "amei-te sempre muito" e outro que a cercava tantas vezes a gritar implorando a gostosa da boca que queria, e a boca dela sêca, a acordar a amargura da vida que nunca perdoa, e o passado que não fica no passado porque é um fio que trazemos na algibeira e de que nunca largamos a ponta, parece estar tudo ligado... menos as juntas que não ligam, a casa que lhe dói por dentro. Pensa, remexe-se e ouve a porta a fechar-se por fora, é a casa que é tudo e que lhe dói por dentro e fica-se a olhar para o fio que traz na algibeira da sua nudez, não sabe para onde vai, mas sabe sempre donde vem. Um dia corta o fio, e a casa, e deixa de esbarrar nas esquinas, e bate a porta por dentro e deixa cair a maçã, que sempre traz na nudez que vestes antes de partir, e tu não queres.