Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

12 novembro 2012


Aprendi cedo a não me render ao choro, mas cedo aprendi que não me rendendo ao choro, sempre me rendi às lágrimas que me sulcam a pele e caem algures no mundo onde não caibo. Cedo aprendi que há uma grande diferença entre chorar e as lágrimas nos caírem sem querermos, sem soluçarmos, sem os ombros balançarem ou a boca expressar o choro que nos sai de dentro, que queremos que saia, que choramos. Que queremos tirar de dentro de nós, que queremos libertar e que nos liberte. Lembro-me da primeira vez que pensei precisamente isto, estava no liceu sentada no parapeito duma janela, à frente tinha uma escada que não dava para lado nenhum, apenas uma pequena sala vazia. Do lado de lá do vidro estava um pátio, vazio também. Não havia gente, não havia ninguém, nunca houve. Eu agarrada aos joelhos, como ainda hoje faço. Lembro-me de nessa altura pensar que era assim, que chorar e render-me às lágrimas que me escapavam não era o mesmo, que o sofrimento pode ser activo ou passivo, reactivo ou só resignado, as lágrimas essas é que são iguais. Suponho. Só que há coisas por que não vale a pena chorar, porque não está nas nossas mãos mudar, então não se chora, mas as lágrimas choram por nós. Foi nessa altura que comecei a escrever, foi nessa altura que achei que o meu mundo, aquele que me amparava quando não havia ninguém, nunca houve, não cabia neste outro mundo em que caí sem me perguntarem se queria. Sempre quis fugir-me, achar casa nesse mundo emprestado que queria meu, mas se o queria, não o queria também. As raízes são de onde se fincam, na terra que lhes calhou, não na que queriam abraçar. Nem sempre será ao sol e abrigada, é onde é, e convém sabermos onde é para não nos perdermos e ficarmos sem chão, sem terra nenhuma onde ficar os pés, os pensamentos e os sentires. Onde sermos nós. Verdadeiramente nós. Acho que por isso nunca consegui sair desse mundo solitário, cheio de conversas que nunca existiram, de pensamentos, de sentires, de sucessivos porquês e repetidas respostas diversas. Nessa minha casa o lema é perceber. Perceber-me nesse mundo que não é meu, perceber esse mundo que não é meu, as pessoas que lá encontro, os factos, as causas as consequências, os porquês. E os porquês do que é meu e da maneira de olhar o que não é. Nessa casa dos porquês onde ainda hoje, e sempre, vagueio, percebi que nem tudo tem porquês, mas tudo tem consequências. Que a causa e a consequência nem sempre comem à mesa da razão. Aprendi que há coisas sem razão, e que a única razão de existirem, é não terem razão nenhuma. E perceber que essa é, às vezes, a melhor razão de todas. E é essa a razão porque volto sempre a esta casa, que é a minha, onde não há ninguém, nunca houve, quando volto está sempre vazia, onde não se chora, mas as lágrimas caem sem me render ao choro. E se um dia a penso não vazia, se um dia a penso como um lar, onde viver sem ser à noite e só, em que se fala a mesma língua, onde as conversas têm resposta, mesmo que não tenham razão ou porquês, e os pés se parecem fincar em terras gémeas, então, então percebo que me esqueço às vezes de que sou ainda aquela miúda sentada no parapeito da janela a olhar para o pátio vazio e para as escadas que dão para uma pequena sala vazia, onde não há ninguém, nem nunca houve. O mundo é lá fora. As lágrimas são cá dentro. A terra é onde é. As raízes são minhas. Não há porquês e esses são os porquês. É assim. Só.
[houve alturas em que te lembravas a meio dos jantares, ou do que fosse, e me mandavas um mail, uma mensagem, uma palavra sem som mas de presença, da minha presença em ti. agora lembro-me disso, em flashes de memória que arranham, e depois visita-me o que me dizias há não tanto tempo assim, que há uma altura certa para tudo, que tudo tem um prazo para acontecer, e eu não sei onde me perdi nesse prazo, nessa validade que não vi passar, nesse prazo que não senti passar-me, que não sinto, não sinto ainda nada errado, fora de prazo válido. deve haver algo de errado em mim, porque já não estou presente em ti na ausência... já não não há gestos, devem ter passado a validade sem eu saber, porque os meus devem ter falta disso, de prazo, continuam como se o tempo não os gastasse, como se o vento não os arrastasse para o passado de nós. para o meu passado de nós, que não passou, que não me passou.]