Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

18 julho 2010

Apetecia-me, apetecia-me manda-lo passear, é verdade. Estou num daqueles estados de espirito que me deviam assolar mais vezes e eu conseguiria duma vez por todas despegar-me, ganhar raiva constante e consistente, disciplinar a mente e pôr a razão de volta ao comando das operações. Perceber que não gostar não é uma esperança, que gostar é um estado de estupidificação que tem de ser domado. Perceber que se não se é gostado, também isso não muda por muito que se faça, ou queira não ver, ou se vejam coisas onde não as há. Não gostar é não gostar. É não estar, é não pensar, é não querer.
Estou cansada, cansada de gostar demais, sempre demais de quem gosta de menos e magoa mais. Estou farta de parecer um semaforo intermitente, em que não se sabe se se vai ou se se fica. Estou farta das mesmas faltas sempre, sabendo que magoa muito, pouco ou nada. Tudo é indiferente, a tudo se passa por cima, e no fim estou lá sempre, feita parva, de cara fechada, que sempre tem o dom de abrir, mas nunca de curar as feridas que se enfiam para dentro e raramente saram.
Olhou para o lado, finalmente adormecera. Nunca o havia visto dormir, nunca quisera adormecer com a certeza de acordar sem ele, preferia sentir a perda despedindo-se, do que adormecer sobre ela e acordar perdida da despedida. Estava cansado, tinha chegado tarde, quase dez horas, trincaram qualquer coisa e saíram. Ela pegou nas chaves do carro e adiantou-se para o volante. Começou a abanar a cabeça, não queria, queria ele conduzir, não gostava de ser conduzido. Teimoso que nem uma mula, insistiu, já ela sentada. Ela, mula, disse que ou entrava, ou ficava, e então era escusado ela ir. Tentou não esboçar um sorriso, e ela fingiu que não viu o sorriso que fingiu não sair, que eram sempre os de que mais gostava de lhe arrancar, e das gargalhadas que às vezes surpreendiam o ruído das conversas parvas que tantas vezes tinham, e que lhe inundavam depois as memórias.
Nunca percebera aquela mania de querer conduzir, como se se agarrasse à sensação de dirigir, conduzir alguma coisa na sua vida, teimando em não ver, não perceber, que ele apenas se levava aonde os outros escolhiam ir, atestava o carro, via a pressão dos pneus, o óleo, assegurava toda a logística, e depois sentava-se ao volante e tinha a sensação que conduzia alguma coisa, quando apenas se transportava a um destino, quase nunca o dele. Por isso obrigara-o a inverter o sentido, ele escolhera o destino ela conduziria. E acabou por adormecer, afinal confiava nela. Nunca se adormece sem confiança, mesmo com o cansaço a pesar nos olhos, e a noite avançada na escuridão, onde agora estavam mergulhados, a caminho de um destino dele. Nunca percebera porque aquele homem não conseguia dizer que não, não conseguia falhar aos outros, como se isso fosse falhar a ele próprio, como não conseguir chegar a tudo e a todos fosse sempre uma falha dele, sem perceber que exigir demais é falha de quem exige. Para ele a falha era dele, e desdobrava-se. Sempre. Para não sentir que falhava. Falhar aos outros era falhar-se.
O céu estava limpo, lindo, com a lua crescente a beijar o horizonte de quando em vez, e a aparecer rendilhada quando se escondia meia envergonhada, atrás das árvores mais altas enamoradas dela. E de novo olhou para ele, agora, velando-lhe o sono e o caminho, revia o enorme homem que era, que sempre vira, que sempre sentira, e um sorriso iluminou a escuridão da viagem, como a lua iluminava a noite. Fez-lhe um carinho, uma festa no cabelo já grisalho. Quando o conhecera ainda assim não era, mas gostava assim, gostava assim ou doutra maneira, gostava dele, e apeteceu-lhe dar-lhe mimo, sem que ele soubesse, sem mesmo que ele sentisse, e pousou a sua mão sobre a dele, ele mexeu-se mas não acordou, como que se sorriu, deveria sonhar, e ela também, sonhava sempre, quase sempre acordada. Tinha uma cabeça que raramente parava, e não que fizesse por isso, só não conseguia calá-la, pará-la, controla-la, sempre a pensar, sempre a sonhar, sempre a tentar não sonhar, sempre a escrever no pensamento tanta coisa que o papel nunca conheceria. Tinha fases assim, e agora andava assim há muito tempo. Sentira-se desabrochar sob o olhar dele, não conseguindo perceber, distinguir, se o desabrochar tinha nascido da sua contemplação, se apenas aconteceu ele estar lá para ver. Mas estava diferente, sabia-o. Assustava-a não saber se para melhor, se para pior...
Finalmente a viagem acaba, ela leva-o ao destino que ele escolheu. Pára o carro. Olha-o. Dorme ainda. Dá-lhe um beijo mansinho, recosta o banco e fecha os olhos.
Ele acorda, dá-lhe um beijo pequenino na testa, e ela acorda.
- Então, chegámos e tu adormeceste?
- Era para ser acordada por ti.- diz ensonada, no meio de um sorriso. Ele abana a cabeça.
- Porque não me acordaste quando chegámos?
- Para não te acordar amor...