Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

06 maio 2014



"As mulheres têm a mania de dizer, num estranho tom acusatório, que os homens não conseguem manter um compromisso de Amor, que abandonam uma mulher por outra com uma facilidade enorme porque não sabem Amar. Nada disso é verdade. A verdade é que o Amor não pode ser um compromisso.

Nenhum homem aceita um Amor que não seja o maior de todos, o que vai sendo cada vez mais difícil de conseguir com a idade. Depois de um Amor grande, nenhum consegue interessar-se por um Amor médio. Nem é má vontade, é apenas uma impossibilidade.
As relações curtas são legítimas e necessárias, mas não são Amor. São remendos à solidão.
O problema de muitos homens é que as mulheres aceitam remendos como se fossem Amor. Por um lado porque não gostam da definição de remendo, por outro por serem mais inteligentes. É que assim existe uma grande probabilidade de Amarem menos do que são Amadas. Numa relação desequilibrada, é sempre fodido Amar mais do que se é Amado.
Um homem pensa sempre que se o seu Amor terminar não conseguirá ter outro, pelo menos tão cedo. É que os Amores grandes não andam por aí pela rua à mão de semear. Já os remendos, felizmente, sim. Quando não se Ama ninguém, os remendos são uma questão de sobrevivência.
Eu vivo um Amor grande nos tempos que correm, o maior de todos. Ando a aproveitar para viver o mais possível. A sobrevivência é só para quem sabe."


Do Bagaço.


E eu não sei: não sei sobreviver, dói-me muito essa vivência da sobrevivência.
E eu gostava que este texto fosse todo mentira, e que depois de um Amor grande um Amor médio não fosse uma impossibilidade, mesmo que esse Amor médio fosse só do meu lado, e fosse mais amada do que amasse, como diz o Bagaço que as mulheres preferem. Eu não, eu acho que a felicidade está em Amar e poder entregar esse Amor a quem amamos, ser mais amadas do que Amar é aceitar não ficar com a melhor parte. Com a parte que nos dá tudo. Isto, mesmo sabendo que neste momento o que preciso é de ser amada, consertada, mimada. 
Preciso, mas precisar não é Amar. Precisar é sobreviver, e eu não quero - a sobrevivência dói-me.
Amar é amar o outro, consertá-lo, mimá-lo e com isso ficarmos consertados, mimados e sentirmo-nos amados pela vida. 
Não quero remendos, nem ser o remendo de ninguém.
A sobrevivência não é para quem sabe, é, talvez, para quem não sabe (querer?) mais.
"Seriam também as gotas de água no rosto de Olvido e a sua mão esquerda deslizando pelo corrimão da escada a caminho do quarto, o estalido do chão de madeira, a alcatifa onde ela prendeu o salto do sapato, o enorme espelho à direita onde a viu olhar-se de esguelha ao passar, as gravuras nas paredes do corredor, a luz tênue e amarelada que entrava pela janela quando, diante da grande cama do quarto, depois de se livraram dos casacos molhados, ele lhe levantou devagarinho o vestido até às ancas enquanto ela, na penumbra, o olhava nos olhos com uma intensidade fixa e impassível, apenas com metade do rosto iluminado, bela como um sonho. Nesse momento, Faulques sentiu uma alegria no coração - um gozo simultaneamente tranquilo e selvagem - por não o terem matado em nenhuma das vezes em que isso teria sido possível; porque, nesse caso, não estaria ali nessa noite, despindo as ancas de Olvido, e nunca a teria visto retroceder, reclinando-se na cama, sobre a colcha intacta, sem deixar de o olhar por entre o cabelo solto e molhado de neve que se lhe derramava sobre a cara, com a saia subida até à cintura, abrindo devagar as pernas com uma mistura deliberada de submissão e desafio impudico, enquanto ele, ainda impecavelmente vestido, se ajoelhava diante dela e aproximava a boca, intumescida pelo frio da noite, da escura convergência daquelas coxas longas e perfeitas, em cujo centro pulsava cálida, suavíssima, deliciosamente húmida ao contacto dos seus lábios e da sua língua, a carne esplêndida da mulher que amava."

Pérez-Reverte, in O Pintor de Batalhas

Das descrições mais bonitas que tenho lido: a memória de todos pormenores que guardou; o agradecimento por estar vivo para poder viver o momento que dava sentido, sem qualquer dúvida, a não ter morrido ainda, como se só por isso tudo tivesse valido a pena; o próprio gesto de devagarinho lhe levantar o vestido, e aquelas últimas palavras: "a carne esplêndida da mulher que amava". Lindo. Quero um dia chegar a casa assim, um dia quero ter isto com alguém. Se existir. É lindo.

[...é triste quando acabamos um livro que nos traz presos. Acabou, e fica aqui (de novo) a passagem, para mim, mais bonita dum livro que faz pensar, que nos obriga a reflectir no lado mais maligno do ser humano, talvez do lado menos humano. Ia a escrever mais obscuro, mas como o próprio livro parece explicar, esse lado não é obscuro, nem escondido, é transparente quando a situação é a certa para isso. No fundo é a guerra que mostra a Humanidade mais crua do ser humano, ou a falta dela; mesmo que todos, à partida, também possam amar assim. Como se ama nesta passagem transcrita. E matar de forma simétrica. Simetrias: beleza e horror, as componentes dum equilíbrio caótico e indecifrável. A humanidade, o Amor, a guerra.
E agora, dormir como?  Como fechar os olhos?]