Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

25 dezembro 2014


A primeira lareira feita em minha casa este inverno. 
Algum dia tinha de ser. Foi hoje. 
Pés quentes e leituras, silêncio e chá. 
No silêncio cabe tudo, hoje até eu.

"gostos de filmes que são espelho. daqueles em que me vejo no ecrã. daqueles filmes que nos fazem pensar na nossa vida, em que passamos mais tempo dentro das personagens, do que apenas a olhar a história. no ultimo que vi, mr jarvis cocker sai-se com uma observação filosófica: 'a vida é igual para todos, o que nos distingue é a dose de imaginação que cada um põe nela'. tão simples. e é para isso que servem os filmes, quase uma forma de nos vermos nas palavras dos outros, na forma de viver de outros. e, se pensar um pouco, se calhar é assim que faço nos dias: ando sempre por perto dos espelhos em que gosto de me ver. é um bom conceito.
com o que vemos no reflexo das pessoas, definimo-nos, não pelo que queremos ser, mas pelo que somos de verdade. não pela intenção, mas pelo resultado dessa coisa tão delicada que se chama intimidade. são mais tristes as pessoas que não têm espelhos. ou que os evitam porque não se querem ver. ou pior, porque não gostam de se ver. porque custa confiar no vidro. é frágil. e às vezes os espelhos partem, e por mais que se cole, que se remende, fica lá sempre aquele risco, feito cicatriz, a cortar a imagem limpa. faz parte do jogo. aliás, é aqui que entendo que muito do que somos, devemos aos outros. porque há pessoas que me fazem mais - mais divertido, mais leve, mais homem. há pessoas que me tornam um ser melhor, apenas pela forma como me entendem, me percebem, pela forma como tornam fácil partilhar essa intimidade. são espelhos em que nos fazemos bonitos. deve ser por isso, que gosto tanto de te dizer: 'és tu, quem me faz mais inteiro..' 
mas, o que vibro mesmo, é ser o espelho das pessoas que gosto. saber que em mim sorriem, choram, descobrem, emocionam-se, excitam-se, amam. vivem. quase vício, é um privilégio sermos o reflexo de alguém. quase emoção, é ver alguém a ganhar expressão por nós, a ter aquele briho nos olhos quando nos vê, a soltar aquele sorriso tonto, feito berro, quando dizemos uma tolice. a escorrer uma lágrima por nossa causa, daquelas boas, quando se sabe que não se pode ser mais feliz, do que ali, naquele momento. mas curioso, nos espelhos "humanos" não vemos o nossa imagem reflexo. pelo contrário, vemos apenas o que a nossa presença provoca nos outros. é menos narcísico e muito mais doce. porque é isso amar: é projectar no outro todo o bem que lhe queremos. e sermos realizados assim. "em ti, faço-me feliz!" - deve ser a frase mais bonita, não de se dizer a alguém, mas de se sentir em alguém.."


[... E se nos rodearmos de pessoas que não são o nosso espelho? Onde não nos vemos? Onde não nos sentimos? Começaremos o tornar-nos espelhos do que nos rodeia? Dos que nos rodeiam? Para que a imagem que vemos reflectida se torne real? Ainda que não realmente nós? 
Penso que isto me aconteceu durante muito tempo, tentar ser o que me viam, ou queriam ver. Corresponder ao que deveria ser o meu espelho sem o ser, tornar-me uma imagem de mim que não me abarcava, pelo menos não o todo que sou, que posso ser. Ainda que quisesse ser como queriam que eu fosse, porque me faziam crer, ou eu pensava, que aquele reflexo era o melhor de mim, mas o melhor de mim tem partes que me queriam abafar, ou então, asfixiavam-no, mesmo sem querer. Não sei, sei que continuamos o processo para não desiludir, para não partir o (suposto) espelho, porque parece mais seguro sermos quem esperam que sejamos. E evitamos o olhar de desilusão de não sermos o que esperavam, o medo de sermos piores, de nos acharem piores, sem perceber que diferente do que esperam pode não ser pior, apenas diferente, mas verdadeiro porque mais inteiro, mais nós. E que aquele não é o nosso espelho, enganaram-se, enganámo-nos nós também se o pensámos ser. E um dia abrimos brechas, ficamos riscados, partidos, sentimo-nos aprisionados nesse espelho que não é nosso afinal, no entanto, a quem nos vê, parecemos intactos, mas por dentro, em nós, percebemos que é o espelho intacto em que nos têm que nos faz partir, prender, perder partes de nós que precisamos, abdicando da inteireza do ser. Normalmente é quando nos deparamos com um espelho que de facto nos vê, nos vê inteiros, e de repente podemos ser felizes assim: inteiros e nós, com espelhos à volta que nos vêem, que nos querem ver, e que nos fazem mais e melhor. 
Hoje, e desde que voltei a escrever, penso que me rodeio muito mais dos espelhos que me reflectem, e espero que vejam o mesmo em mim, que os faça verem-se a si mesmos no melhor que têm e são, e que é também por isso que os mantenho perto. Porque essa intimidade mo pede e mo permite. Porque me vêem como sou, como quero ser, e ficam. Os que ficam. ]