Afinal tens razão - estragaste-me a vida. Só não tens a razão que pensas, porque não me estragaste a vida que tinha, essa só eu e quem fazia parte dela a poderia estragar. Não padeço dessa falta de inteligência que comodamente inverte o sentido entre causa e consequência. Não sofro dessa, mas sofro doutras, e como sofro por elas... Estragaste-me pela vida que vi, a vida que me mostraste, que me deste, que vivemos. Estragaste-me, e agora não há vida que me encaixe, que me sirva, que me reste, porque tudo me sobra. Sobra-me espaço, sobra-me vazio. O Lobo Antunes diz que as pessoas são como casas, nem todos os quartos estão habitados. Eu tinha quartos que não sabia até os escancarares, e juntos os habitarmos. Entrámos, despojámo-nos, abrimos janelas com vistas conversadas de mundo, daquele que se via fora das janelas e janelas adentro, tivemos o prazer da pele ao sol, dos banhos de luar quente, do silêncio que era só paz, dos beijos que encostavam as almas. Agora, tudo desabitado - a lua fugiu do céu, o sol veste-se de luto e o silêncio enche-se de vazio por ser. Bateste a porta por fora, carregas as chaves num bolso esquecido da alma que emprestaste, ou que devolveste à morte que sobrevive. Não, não tens a razão que pensas, não me estragaste a vida, apenas aumentaste a extensão de vazio que ocupa espaço. Estragaste-me a mim, desarrumaste-me uma casa que não sabia ter, trancaste o sol num roupeiro e arrumaste a lua numa gaveta sem estrelas, embrulhada num papel escrito na língua do silêncio - desabitaste-me. Desabitada, estragada na arquitectura que não sei viver, sobrevivo, sobreviverei, como sempre. Só me soçobra espaço ocupado de vazio. Sobrevivida ao vazio -um dia quiçá -, sairei mais bem apetrechada se alguém me entrar em casa, me invada sem aviso, de chave mestra nas mãos feitas para só tratar bem, com um sol desempoeirado pendurado em cada gesto quente, um luar em cada olhar que me banhe, e cheio de beijos de alma que me habitem. E que fique, e que eu queira que ele fique tanto ou mais do que ele queira ficar. Que me habite sem hábito de certezas, na certeza que esse querer não é um hábito. Talvez, talvez, possas não ter razão nenhuma, afinal.
Eva me chamaste
Fizeste das minhas costas o teu piano
Dos teus desenhos as minhas curvas
Da minha boca a tua maçã
Dos meus olhos o teu mar
Do meu mundo os teus braços
(...)
Fizeste das minhas costas o teu piano
Dos teus desenhos as minhas curvas
Da minha boca a tua maçã
Dos meus olhos o teu mar
Do meu mundo os teus braços
(...)
25 janeiro 2015
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