Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

12 março 2013


A casa doía-lhe no corpo, nos cotovelos, nos joelhos, nas juntas que não juntavam, que separavam. Mexia-se e lá vinha a casa doer-lhe nas entranhas das peças que não ligavam. Às vezes dançava como quem respira, em harmonia com a vida, outras lembrava-se da vida, desabava-lhe a respiração, e tudo se desarticulava, parecia um boneco articulado desengonçado nas mãos desarticuladas dos dias que não perdoavam. A vida nunca lhe perdoava, e ela muitas vezes desistia de ouvir música, era um desperdício de ouvidos, mexer-se um chamamento arriscado, porque a casa estava em cada esquina de que fugia, mas em que sempre esbarrava, e o corpo queixava-se - doíam-lhe os cotovelos, os joelhos, às vezes até os olhos em protesto do que viam, os ouvidos que não queriam os barulhos da casa por visita; e a música cada vez mais bonita e mais rara, e a harmonia no dançar um êxtase secreto perfeito de duração duvidosa. Às vezes a casa acordava-a a meio da noite e dizia que tinha de ir pôr o cão lá fora, tinha de educar o cão, ensiná-lo a tratar bem da casa, e do jardim, que a casa era tudo o que importava... e ela às vezes interrogava-se se ela também não deveria importar, mas interrompia-se ao ouvir um eco vindo de longe que dizia "amei-te sempre muito" e outro que a cercava tantas vezes a gritar implorando a gostosa da boca que queria, e a boca dela sêca, a acordar a amargura da vida que nunca perdoa, e o passado que não fica no passado porque é um fio que trazemos na algibeira e de que nunca largamos a ponta, parece estar tudo ligado... menos as juntas que não ligam, a casa que lhe dói por dentro. Pensa, remexe-se e ouve a porta a fechar-se por fora, é a casa que é tudo e que lhe dói por dentro e fica-se a olhar para o fio que traz na algibeira da sua nudez, não sabe para onde vai, mas sabe sempre donde vem. Um dia corta o fio, e a casa, e deixa de esbarrar nas esquinas, e bate a porta por dentro e deixa cair a maçã, que sempre traz na nudez que vestes antes de partir, e tu não queres.

4 comentários:

Sisi disse...

è da tua autoria?
arrepie. lindo.

Eva disse...

:)
é. acabadinho de sair dos dedos...
às vezes dá-me para isto...
Obrigada

Anónimo disse...

este texto diz me muito...tanto.

cortei o fio, a casa, e bati a porta por dentro, e deixei là medos e preconceitos...
mas volta e meia o fio volta, assim como um fantasma, em sonhos, recordações, num rosto, num perfume, num som de passos...

como cortar de vez essa dor, Eva?



Este lindo texto diz me muito... tanto...
Eu cortei o fio, a casa, e bati a porta por dentro, e deixei medos e preconceitos.
Mas volta e meia, o fio persegue me em sonhos, recordações, num rosto, num som de passos...
Esse fio é dor que não sei cortar de vez...:(

Tu escreves lindo, Eva. Beijinho de bom dia para ti.

n.










e tu escreves tao lindo

Eva disse...

oh n., assim babo-me menina!!!
Tenho pena que sintas tanto o que escrevi porque sei o que é sentir para lá das paredes com que nos fizeram, mas só podemos esperar que isso nos torne mais aptos a ser felizes, a saber saborear melhor o que de doce a vida nos trouxer, esperemos que sim...
(que seja a recompensa da coragem, do enfrentar a vida com audácia, mesmo que com medo, e muita, muita incerteza...)
Beijo grande, n.