Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

22 abril 2014

"Espreito. Continua a dormir. Não resisto à tentação do vício antigo e, guloso da sua beleza, levanto a roupa, fico-me a admirá-la num arroubo que soma os desejos da vida inteira. Mas cubro-a ao ver que treme num arrepio e passo o braço sob o seu pescoço, dou-lhe o meu calor.
Com uma ternura que nunca antes conheci beijo-lhe ao de leve os cabelos e a fronte, a face. Saciado de corpo e alma, afagado pela memória da noite, prendo a sua mão na minha e volto a adormecer.
(...)
Isso é o que ontem nos uniu. O que provavelmente nos separa, e a torna a ela distante e a mim melancólico, é a fantasia. A sua franqueza não quer enfeites, não conhece esperas nem precisa de sonhos. Nela só o corpo dá, só o corpo recebe e partilha. Sensibilidade e alma ficam de fora, assistem, mas não participam, são o escudo que um dia poderá opôr às recordações.
Eu, ao contrário, logo me perco a imaginar e sonho com mais, mais alto, mais intenso, cavo desatinadamente o desengano. Falo comigo próprio, mas é ao Gato que oiço e compreendo melhor as suas confidências, o desespero de não conseguir explicar o seu amor.
(...)
- Vê se não esqueces nada.
Mas ela não me escuta, e sem se importar com a chuva espera na rua, começa aos pulos de criança quando o carro dobra a esquina.
O homem sai, mas mal o vejo, Laura a abraçá-lo num frenesim de beijos e afagos. Só agora que se encaminham para mim, ela sem o largar, é que distingo não ser ele o jovem loiro de olhos azuis da minha fantasia, mas homem da mesma idade, cabelo grisalho e boa aparência, vestido com uma elegância de italiano."

J. Rentes de Carvalho, in A Amante Holandesa

[Acabou. Fico a pensar neste final do livro e no que ele me faz perceber, concretizar e resumir: as coisas nunca acabam por aquilo em que achamos que são impossíveis. É sempre alguma coisa que não esperamos que nos derruba. Talvez por isso, por não esperarmos, é que sucumbimos. 
No caso dele, na cabeça dele, a impossibilidade seria a idade, as diferenças, e afinal o amor dela vivia precisamente a possibilidade dessa impossibilidade aos olhos dele.
E eu tenho percebido isto, é o que não esperamos que nos derruba, porque o resto julgamos entender e acomodar no nosso olhar sobre a vida, mesmo que não concordemos e ainda que não gostemos. O que não esperamos atinge-nos no estômago fatalmente, sucumbimos e aterramos, não temos reacção. Era tudo o que não esperávamos. É a possibilidade real duma impossibilidade que não nos ocorreu.
A impossibilidade nunca está onde a esperamos.
Acabou o livro. Muito bom. Tenho de escolher a próxima vítima.
E agora tenho mesmo de ir fumar outro cigarro. E amanhã não sei como vai ser para levantar e rumar ao trabalho. Vou tentar pensar em todas as possibilidades que agora me assomam impossíveis. Não quero que me derrubem. Outra vez.]
Boa Noite, outra vez.

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