Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

07 maio 2014

Enquanto fazia uns ovos mexidos e uma torradita de jantar, batia os ovos e pensava que de todas as pessoas que me passaram na vida e de quem gostei quase nenhuma se interessou realmente por mim. E quando digo interesse por mim, é interesse na minha pessoa, em quem sou, como sou e como me fiz quem sou, as estruturas que me suportam o eu. Interessam-se sobre o que gosto de fazer, o que penso sobre algumas coisas, do que gosto, mas não sobre mim, sobre o passado, sobre a vida que tive, o que vivi, o que tive a mais o que tive a menos, o que nunca tive, o que me torce a alma até escorrerem lágrimas. Eu sempre me interessei pelas pessoas, pela maneira como pensavam, mas principalmente o porquê de pensarem assim, as origens das coisas, os porquês. Engraçado que as pessoas gostam sempre de falar de si, e se se souber ouvir, e fazer algumas das perguntas certas, as pessoas falam, explicam-se, revelam-se, traçam o mapa de si mesmas. E quando gosto de alguém, gosto de lhe conhecer o mapa, de saber os porquês e os comos, gosto de encontrar o fio que une a vida da pessoa, as suas atitudes, o seu modo de pensar e viver, e claro de sentir. Do outro lado, esse interesse raramente o noto, penso que só uma pessoa me conheceu melhor e quis mais saber de onde e como cheguei ao que sou, foi a única que acho que realmente gostou de mim, verdadeiramente, genuinamente, ainda que não da maneira certa - ou da maneira certa para mim-, e a culpa foi minha, provavelmente toda a vida andei a tentar esconder-me duma parte de mim, abafá-la, asfixiá-la, domá-la. Não consegui, como agora entendo, que nunca se consegue porque nós vimos sempre, e sempre viremos ao cimo de nós mesmos, seja como for, venha o que vier - mais tarde, ou mais cedo, há que aceitar. A paixão que me corre nas veias, a vontade que me brilha o olhar, a vontade de amar sem chão e sem razão, rompeu os dias que queria certos e racionais, arrumados para uma vida, que depressa se mostrou não ser vida para mim, não ser a minha vida. Não era eu. Eu tenho de escrever, de transbordar em palavras, tenho de escavar em mim e nos outros, tenho de entender, e tenho de me dar mesmo quando tudo me diz para não o fazer. Tenho de chegar ao fim do caminho, tenho de percorrer o caminho, porque o tenho nos pés antes de o fazer. E foi o que fiz quando acordei em mim e numa vida onde os meus pés não mexiam, calçados onde não cabiam. Descalcei-me, e pé no chão pisei as pedras que no meio do meu caminho me apareceram, não desviei caminho, não tomei atalhos, não pensei se haveria lugar melhor ou caminho menos doloroso. Aquele era o meu caminho, era o caminho dos meus pés, eles sabiam e não paravam. Não pararam. Chegaram onde tinham de chegar. E nunca em todo o caminho, o de agora ou outros de antes, alguém o entendeu ou quis entender. Nunca ninguém se interessou pela vontade dos meus pés, o porquê, onde e como começaram a andar, do que fugiram toda a vida, ou do que toda a vida tiveram medo, do que os fazia correr caminhos de alma mesmo amarrados. Nunca ninguém, à excepção da pessoa com quem casei, me quis saber por dentro desde o inicio do meu tempo, e essa pessoa não me entendeu, nem poderia, não mostrei o que queria esquecer que tinha,  que queria domar sabendo que não era amestrável, eu sabia que não o entenderia, eram caminhos que ele não saberia pisar comigo, não lhe moravam nos pés. Mas nada o impediu de tudo o que de mim sabia o usar contra mim quando os caminhos se desencontraram, quando quis aprofundar as feridas que sabia e conhecia o lugar. Mas ao menos ele fez por conhecê-las. Não tenho rancores nem ódios, quero estar bem, só isso, como sempre quis e por isso sempre passei por cima de tanta coisa, até ao ponto de, de tanto amontoar coisas e tentar passar por cima, elas tornaram-se tamanha montanha que a luz deixou de passar, e eu deixei de subir a montanha para chegar ao lado onde tudo isso ficava para trás. O casamento acabou. Uma parte de mim renasceu, os meus pés mexeram-se e descalçaram-se. 
Eu, quanto mais gosto da pessoa, quanto mais genuinamente gosto dela, mais a quero desvendar, e quanto mais desvendo mais compreendo e mais compreendo o que gosto e não gosto, mas aceito porque posso entender e porque gosto. Neste momento ninguém no mundo sabe como estou, se estou, o que passo, o que penso, ou como, ou o porquê de tudo isso. Os porquês, sempre os porquês. Nunca ninguém mais quis descobrir a resposta ao meu. É preciso gostar, gostar genuinamente para querer saber o porquê e amar além de todos os porquês - os meus e os dele.

[ainda bem que o prato não era elaborado senão o testamento não sei que comprimento teria...]

11 comentários:

Anónimo disse...

Que lhe torce a alma até lhe escorrerem as lagrimas além da sua capacidade de entrega nao encontrar um receptáculo a sua medida?

Eva disse...

Pergunta feita demasiado tarde se houvesse real interesse na resposta. Ou já teria sido feita, e outras. Mas nunca nada foi sobre mim. Eu nunca existi. Por isso é que a pergunta é feita tarde, senão não seria vez alguma tarde para o que quer que fosse.

Eva disse...

Nunca foram passadas noites em branco a tentar perceber-me, desvendar-me, conhecer-me. Responder a essas ou outras perguntas. As perguntas, a vontade de saber e perceber, nunca foi sobre mim. Eu nunca (lhe) fui nada.

Anónimo disse...

Esclarecedor esse demasiado tarde.

Anónimo disse...

Penso que a grande maioria das pessoas passa quase toda a vida a tentar esconder aquilo que sente, a treinar, a domar mesmo até de quem lhe é mais próximo e muitas vezes mais ainda de quem lhe é mais próximos, dai as perguntas muitas vezes nao surgirem mas sim existir uma tentativa de ler sinais que supostamente nao deveriam e o emissor nao quer transmitir. Umas vezes são certos outras provavelmente errados. Mas as perguntas deixam de ser verbalisadas sim.

Anónimo disse...

Mas parece tudo tarde, até a hora.

Eva disse...

Eu sempre verbalizei perguntas e observei pormenores, sinais, isso que fala. Mas não deixei de ter interesse em saber o outro, em ir desvendando ou outro, devagarinho, e a começar a gostar mais dele até por se me tornar mais próximo, e por uma pessoa querer sempre saber o melhor possível de como é quem gostamos.
A pergunta vem demasiado tarde para quem deveria ter tido em pergunta-la e respondê-la muito mais cedo. Perguntada agora é a tentativa de colmatar uma falha, não nenhum interesse na resposta ou em mim, mas pense o que quiser, há pessoas para quem tudo é sempre demasiado tarde, é uma boa desculpa para nada fazer. E isso é que é esclarecedor.

Eva disse...

E é engraçada, agora que penso, essa noção de tarde, de demasiado tarde, que lhe parece tão esclarecedora.
É que há coisas que muitas vezes foram declaradas irrecuperáveis, que não funcionam, de que não se gostam por muito que se tente e esforce, que é demasiado tarde para tudo isso, mas para esse demasiado tarde há sempre mais uma tentativa, um tentar tudo, um testar os limites da paciência e da resistência... para outras situações, o demasiado tarde é apenas uma declaração de desistência, uma desculpa para justificar essa desistência, essa falta de vontade, e não para tentar o que nunca foi tentado, antes que seja tarde.
Como essa pergunta inicial que fez, essa é demasiado tarde para a fazer e parecer que é fruto de algum interesse genuíno, porque se esse interesse existisse, ou tivesse existido, teria sido feita há muito tempo...mas a resposta nunca foi procurada, nem as perguntas feitas, por alguma razão. Falta de interesse.
Foi o que quis dizer. Mas, enfim, entenda como quiser.

Anónimo disse...

Há pessoas que por mais que tentem estar a horas, acabam por perder sempre o comboio da vida.

Eva disse...

...tem piada essa. Porque, apesar de dizerem que há comboios já perdidos, mesmo fora de horas, vão atrás deles... Outros comboios há de que nem querem saber se já estão perdidos, ou não. Escolhas. E isso sim é a vida: escolhas. E desculpas, muitas desculpas. De merda.

Anónimo disse...

Escolhas e absurdos das mesmas