Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

21 agosto 2014

"Teria sido sensível a uma ternura ingênua e quase tímida, enquanto que a alma altiva de Matilde necessitava sempre de ter a ideia dum público e dos outros.
No meio de todas as suas angústias, de todos os receios pela vida daquele amante, ao qual não queria sobreviver, ela tinha uma necessidade secreta de causar admiração no público com o excesso do seu amor e a sublimidade dos seus empreendimentos. Julião sentia-se de mau humor por não se comover com todo aquele heroísmo.
(...)
"É estranho", dizia para consigo Julião, um dia, quando Matilde saía da prisão, "que uma tão grande paixão de que sou objecto me deixe de tal forma insensível! E há dois meses adorava-a! (...) Sou portanto um egoísta?" E fazia a si próprio, a este respeito, as mais humilhantes censuras. A ambição tinha morrido no seu coração, uma outra paixão saíra das cinzas; ele chamava-lhe remorso, por ter tentado assassinar a senhora de Rênal. De facto estava perdidamente apaixonado por ela. Sentia uma felicidade estranha quando, deixado absolutamente só e sem receio de ser interrompido, podia entregar-se completamente à recordação dos dias felizes que passara em Verriéres e outras vezes em Vergy. Os menores incidentes desses tempos, tão depressa decorridos, tinham para ele uma frescura e um encanto irresistíveis. Nunca pensava nos seus êxitos em Paris; aborreciam-no."

Stendhal, in Vermelho e negro

Impressionante, vem tudo nos bons livros (até aquela curiosidade minha daquele prazo inexplicável dos dois meses, pelos vistos é universal e eu não sabia!!... Santa ignorância!), aquilo que se faz com um propósito, com um futuro, com um fito, deixa de existir quando estamos perante algo que nos obriga a fazer o balanço da vida, a recordar o que nos tocou e valeu viver. A vida que sentimos ao longo da vida. O que vivemos sem um propósito, o que vivemos sem razão alguma que não fosse apenas vive: quando vivemos o agora - sem futuro, ou sem pensar nele. Tudo se relativiza, e só sobrevive o essencial, o que nos fez sentir felizes e vivos, o resto enevoa-se e esquece-se. Quando o propósito ou a razão se dissipam, tudo isso desaparece com eles, fica o que se viveu por gosto e vontade de viver.
O que fica foi o que nos tocou, o resto foi  tempo que passou e que não tocámos, passou só.

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