Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

20 janeiro 2015

Hoje apeteceu-me a varanda outra vez, mesmo com frio, enrolada na manta esburacada. O balanço do dia, o peso dos pensamentos que me correram no dia. Uma coisa boa, uma notícia que acalenta e me deu alguma esperança, e um funeral que me trouxe memórias de infância. Uma velhota que nunca foi nova aos meus olhos, que me faz recordar os brioches quentes para pequeno almoço, aquecidos no forno, dentro duma caixa de metal dourado com desenhos a cores. O açúcar por cima, meio derretido, o doce que aquece a boca e me faz um sorriso antigo. Ainda hoje. A sala era grande, as portas da varanda corrida enormes para o tamanho dos meus olhos. Lá fora, em baixo, o pátio onde corríamos e saltávamos. A casa do caseiro mais abaixo, onde uma vez um cão preso numa corrente me rasgou a roupa quase nova. Tinham-me avisado, eu achava que ele ia perceber que eu ia fazer-lhe festas para se esquecer da corrente. Achei mal... Os dentes não chegaram à carne, e eu não cheguei a ter medo, acho que percebi no fim que tinha mais medo de mim que eu dele. E agora que penso nisso talvez fosse uma lição para a vida que nunca aprendi... Quem tem medo é que ataca e morde. E o cão teve mais medo de mim que eu dele, mas quem ficou sem roupa nova fui eu, e ele deve ter continuado com o medo dele. Também me lembro do quarto com várias camas onde dormíamos, com soalho de tábuas largas corridas, e umas janelas antigas que sobem para abrir, e se sustentam num trinco. Janela aberta que alguém achou por bem fechar, um ano mais nova que eu, ficou com a mão entalada debaixo do peso da janela que não conseguiu segurar. Aquele ano a mais deu-me para achar que tinha de a salvar, e não vou de modas, consigo levantar a janela o suficiente para a mão dela se soltar e trocar pela minha, pela minha falta de inteligência... A janela era pesada, disso lembro-me e de lhe pedir para ir chamar alguém de juízo, enquanto a miúda chorava... Lembro-me de depois toda a gente me gabar o não chorar, e o ter tirado a outra mão mais pequenina de debaixo da janela... E hoje dei por mim a pensar que, se calhar, esta coisa de não chorar onde os outros vêem já é coisa do tempo das janelas antigas... e de me entalar também.
Cá fora, logo à porta de casa, havia um castanheiro enorme a dar as boas vindas com os ouriços no chão para fazer asneiras, depois um corredor enorme de mata a cheirar a eucalipto. Se fechar os olhos acho que ainda consigo cheirar aquele corredor, com um tanque a fazer de piscina de meninas a meio. No fim do caminho o começo duma vista deslumbrante, o Douro mesmo aos pés, um miradouro que adorava revisitar. E os brioches também. Doces, quentes.
Ao tempo que não me lembrava de nada disto, e de estar a jogar ao jogo das palavras, nós as duas e um tio, e era a minha vez, animais começados pela letra "L" e, já com umas rodadas de animais contadas, estava difícil. Alguém apareceu, e o comentário do meu tio para o senhor intruso foi "o que ele quer são lulas"... E eu safei-me. Dessa vez. Ele safou-me, também dessa vez.
(e está frio, está, sou uma doida, pois sim)

Boa noite.

3 comentários:

Joao Joannes disse...

Recordar, que bom que é. Por vezes sentimos o sabor amargo das recordações do tão bom que eram ou do que foi, o sabor amargo do sentimento vil que é o "sentir a falta". recordar, que bom qu é mesmo com estas condicionantes todas.

E se és doida por recordar... que tratem de nos internar a todos... pois todos nós recordamos.

( gostei de recordar momentos enquanto lia os teus)

Eva disse...

Eu gosto de recordar, sim, desde coisas da infância, a memórias com alguns anos, meses, ou de ontem mesmo... gosta de me revisitar. As memórias é o que somos. Eu acredito nisso. É o que nos faz como somos, que explica como e onde chegámos e o que nos fez esse caminho. Gosto de memórias e recordações, mas eu sofro de nostalgia aguda, aquilo que alguns chamarão estar demasiada presa ao passado que não interessa. Mas a mim interessa, o meu passado interessa-me, quem fez e faz parte dele interessa-me, o futuro só conhecerei amanhã, se chegar lá. Quando o conhecer logo verei o que fica dele nas memórias, depois de o viver. Viver, vive-se o presente, nem o passado nem o futuro. Mas vive-se com o que somos, e como somos.
Bom dia.

Joao Joannes disse...

Venha de lá o futuro para se ter com que olhar para trás e recordar coisas boas... Venha de la o futuro...
Boa tarde