Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

02 junho 2015

"O inteiro mecanismo dos meus sentimentos deteve-se há vinte anos, quando Isabel morreu. Primeiro, foi dor, depois, indiferença, mais tarde, liberdade e, ultimamente, tédio. Longo, deserto, invariável tédio. Oh, durante todas estas etapas, o sexo continuou activo. Mas a minha técnica foi picotar. (...) Nunca duas vezes com a mesma. Uma especie de resistência inconsciente ao compromisso, a circunscrever o futuro a uma relação normal, de base permanente. Porquê tudo isto? (...) A minha liberdade? É possivel. A minha liberdade é outro nome para a minha inércia. Deitar-me hoje com uma, amanhã com outra. Bom, é uma forma de dizer; chega uma vez por semana. O que a natureza pede e nada mais. É igual a comer, é igual a tomar banho, é igual a defecar. Com Isabel era diferente, porque havia uma espécie de comunhão e quando fazíamos amor parecia que a cada duro osso meu correspondia um brando côncavo dela, que cada impulso meu encontrava matematicamente o seu eco receptor."

Mario Benedetti, in ATrégua

[Há muitos tipos de morte, há quem nos morra e viva ainda, e há quem não nos morra tendo desaparecido do mundo. Mas quando nos morre alguém, vivendo ainda ou não, passa-se, provavelmente, por todas aquelas etapas. Mas a vida continua, continuamos (temos de continuar) a cumprir com a obrigação de sobreviver, a cumprir as exigências da natureza para a sobrevivência, até chegarmos ao tédio, à inércia, ao comodismo. Alguns chegam a um ponto em que se perguntarão "Porquê tudo isto?" (mas nem isso chega a todos, parece-me...) e a pergunta toma dimensões avassaladoras quando se confrontam os níveis básicos "do que a natureza pede e nada mais" (neste caso que fala o trecho, como alguém me dizia o "esvaziar os tomates" - uma expressão sempre boa e em voga), com o que está para além disso - com o conhecer a existência de "uma espécie  de comunhão", com o saber possível haver, para cada impulso nosso, alguém onde se encontra invariavelmente "o seu eco receptor". O que faz com que se continue nesta inércia do "picotar" ou da sobrevivência, é que há coisas que não se procuram, ou esbarram connosco sem aviso e as encontramos, ou não as conseguimos encomendar, produzir, disfarçar, fingir... simplesmente não dá! E então fica-se pelo que a natureza pede para que a vida vá correndo, e nada mais. Quando, por algum acaso, encontramos em alguém um eco receptor, que se sente como uma parte de nós fora da nossa pele, a natureza transforma-se, o nosso olhar altera-se, e a vida parece dar-nos uma trégua, um descanso de sobrevivência, mas exige que se rompa a inércia. Senão, não haverá trégua, a paz com a vida não se alcança, porque não será amor. A Trégua é sempre o amor.
O amor é a pergunta e a resposta da vida.]

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