Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

08 setembro 2015

"Creio que, nisto, sentimos a mesma coisa. Temos uma imperiosa necessidade de dizer tudo um ao outro. Eu falo com ela como se falasse comigo mesmo; na verdade, melhor ainda do que se falasse comigo mesmo. É como se Avellaneda participasse da minha alma, como se estivesse acocorada num recanto da minha alma, à espera das minhas confidências, reclamando a minha sinceridade. Ela, por sua vez, também me diz tudo. Noutro momento, sei que teria anotado: «pelo menos, assim o creio», mas agora não consigo, simplesmente porque não seria certo. Agora sei que me diz tudo."

"Nunca na minha vida, nem com a Isabel, nem com ninguém, me senti tão perto da glória. Às vezes, penso que Avellaneda é como uma forma que se instalou no meu peito, que o está a dilatar, que o está a pôr em condições adequadas para sentir mais a cada dia que passa. Certo é que eu ignorava ter em mim estas reservas de ternura. E não me importa que esta seja uma palavra sem prestígio. Tenho ternura e sinto-me orgulhoso de a ter. Até o desejo se torna quase imaculado. Mas essa pureza não é beatice, não é afectação, não é pretender que envolvo apenas a alma. Essa pureza é amar cada centímetro da sua pele, é aspirar o seu odor, é percorrer o seu ventre, poro a poro. É levar o desejo até ao topo."

Mario Benedetti, in A Trégua 

Tenho estes trechos guardados há muito tempo,  mas não me tem apetecido pegar nisto, nem nisto nem noutras coisas, mas hoje a remexer nos rascunhos deparei-me com eles, e merecem aqui ficar, no meu registo dos livros que leio e das partes que gosto de reler. O último parágrafo que aqui transcrevo é absolutamente delicioso, lindo. Sentir assim é privilégio de muito poucos, acredito. A noção de ternura, a relação funda de quem conversa sem fronteiras e sem medo de invasões, a certeza de que não se esconde nada, que o que não foi dito não foi por uma qualquer razão de limitar informação, mas apenas porque não surgiu. Dizendo tudo, sempre tudo fica por dizer, porque conversar é quase respirar a vida em conjunto. É isto que abre a porta, ou melhor, que nos deixa - sem sabermos como lá fomos parar - naquele estado em que descobrimos em nós reservas de sentimentos que não conhecíamos, ou não os conhecíamos assim. Como a ternura, como o desejo, como a amizade. Como a pureza de que tudo isto pode inundar-nos e mudar-nos a paisagem da vida, as cores, o sentido, e o sentir. E as duas últimas frases dizem-no da melhor maneira: "Essa pureza é amar cada centímetro da sua pele, é aspirar o seu odor, é percorrer o seu ventre, poro a poro. É levar o desejo até ao topo." Até ao topo é ter o corpo rente à alma, a pele a vestir o sentir,  é amar com desejo, com tesão, sem nunca deixar de ser ternura. É o que gosto de me lembrar de chamar "amorar", ou eu gosto deste termo. Muito.

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