Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

05 novembro 2015

(foto @oxy.to.cin)

Caminhava despreocupada entre o formigueiro de gente que se movimentava como quem tinha um sítio marcado onde chegar. Parecia que só ela observava, só ela, andando, estava parada naquela engrenagem infernal. Viu um rosto que lhe lembrou alguém, procurou nas memórias sem sucesso, não se lembrava quem aquela cara lhe lembrava, ou quem sabe, até seria. Sentaram-se numa esplanada, ele ao lado dela a olhar para algum lado que ela não via, que ela nunca via, e ele parecia nunca a ver, ou procurar ver para onde ela olhava, senão talvez se encontrassem. De repente lembrou-se: era a cara dum familiar afastado que não via há muito tempo, há muito que não sabia nada dele. Pegou no telefone ligou à irmã, descreveu-o, perguntou-lhe o nome. Desligou o telefone perplexa. Tinha morrido há vários anos, não podia ser ele, ou sendo, só o seu fantasma. Chegaram os cafés, ela aqueceu as mãos na chávena e por instantes fechou os olhos para aquecer o olhar. Quantos dos que se vêem serão fantasmas? Se não soubermos se morreram ou não são gente como nós... pensou com um sorriso cego que lhe morreu nos lábios e que nunca ninguém viu. Quantos de nós já estarão mortos? Quantos saberão disso? Abre os olhos e pela primeira vez, naquele dia e não sabe há quantos dias, olhou-o nos olhos, disse-lhe: "era um fantasma". E ele, atónito, repete em pergunta: um fantasma? E ela sente um arrepio que vem da terra, que lhe sobe pelos pés, que chega à boca para lhe responder, respondendo-se a si mesma tantas perguntas por fazer que agora ali se respondiam quase antes de feitas. 
-sim, morreu há anos mas não para mim porque não sabia... se calhar se não soubermos as pessoas não morrem, até as vemos noutras pessoas, ou então são fantasmas. As ruas podem estar povoadas de gente que já morreu e não se sabe, e para quem não sabe estão vivas ou é como se estivessem. Parecem vivos, mas são fantasmas. - semicerra os olhos, metade em desafio, metade com cara de miúda traquina, e acrescenta - "percebes?"
-que disparate... fantasmas?... só dizes disparates.
-disparate? Estás a olhar para um... morri para ti há anos e tu não sabes, nunca quiseste saber, talvez tenha morrido por causa disso. Morri para ti mas o mundo nasceu-me, outra vez, agora.
Levanta-se e mistura-se na engrenagem do mundo. Deixa para trás aquela máscara, aquela armadura, aquela pele endurecida por aquele tempo de vida que serviu apenas para chegar aquele momento, aquele arrepio, em que volta à sua pele, ao que é, ao que sempre foi. Desistiu de desistir de si mesma. Naquele momento regressa-se e reconhece-se. Por baixo daquele tempo e daquela pele sempre fora assim, ela, apenas andou anos a tentar esquecer-se porque ninguém se (a) lembrava dela.
Pergunta-se, enquanto se levanta, se saberão que agora ela está viva para o mundo?... que deixou naquela mesa os despojos duma pele e duma vida que não era sua, que já não queria, que não era ela, nem dela. Soltou-se para agarrar a essência. Não era um fantasma.

2 comentários:

Anónimo disse...

Importa que ela o saiba...que desfrute do seu novo renascer.
A nossa caminhada pelo mundo é feita de transformações intimas profundas; assim crescemos e sofremos e jubilamos e evoluímos. Essa metamorfose pode ser ou não aprrcebida pelas pessoas á nossa volta.
Gostei da imagem "deixou naquela mesa os despojos duma pele e duma vida que não era sua..."
E gostei muito do texto, Evinha. :)
(já não posso dizer o mesmo da foto...: uuuuuh...de meter medo...)


Nanda




Eva disse...

Olá, Nanda
:)
Acho que quem nos rodeia se apercebe quando o mundo ganha outras perspectivas aos nossos olhos, acredito nisso, quando o nosso olhar aprende a ver algumas coisas doutra maneira, quando nos aprendemos a ver de outra maneira - para o bem e para o mal. Se quem está à volta não se apercebe, ou não houve mudança alguma ou as pessoas sabem representar muito bem.
Achei esta foto quase perfeita para este texto, é alguém a despir uma pele que não é à sua cara e a pendurá-la no armário ;)
Bom dia, Nanda