Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

18 julho 2010

Olhou para o lado, finalmente adormecera. Nunca o havia visto dormir, nunca quisera adormecer com a certeza de acordar sem ele, preferia sentir a perda despedindo-se, do que adormecer sobre ela e acordar perdida da despedida. Estava cansado, tinha chegado tarde, quase dez horas, trincaram qualquer coisa e saíram. Ela pegou nas chaves do carro e adiantou-se para o volante. Começou a abanar a cabeça, não queria, queria ele conduzir, não gostava de ser conduzido. Teimoso que nem uma mula, insistiu, já ela sentada. Ela, mula, disse que ou entrava, ou ficava, e então era escusado ela ir. Tentou não esboçar um sorriso, e ela fingiu que não viu o sorriso que fingiu não sair, que eram sempre os de que mais gostava de lhe arrancar, e das gargalhadas que às vezes surpreendiam o ruído das conversas parvas que tantas vezes tinham, e que lhe inundavam depois as memórias.
Nunca percebera aquela mania de querer conduzir, como se se agarrasse à sensação de dirigir, conduzir alguma coisa na sua vida, teimando em não ver, não perceber, que ele apenas se levava aonde os outros escolhiam ir, atestava o carro, via a pressão dos pneus, o óleo, assegurava toda a logística, e depois sentava-se ao volante e tinha a sensação que conduzia alguma coisa, quando apenas se transportava a um destino, quase nunca o dele. Por isso obrigara-o a inverter o sentido, ele escolhera o destino ela conduziria. E acabou por adormecer, afinal confiava nela. Nunca se adormece sem confiança, mesmo com o cansaço a pesar nos olhos, e a noite avançada na escuridão, onde agora estavam mergulhados, a caminho de um destino dele. Nunca percebera porque aquele homem não conseguia dizer que não, não conseguia falhar aos outros, como se isso fosse falhar a ele próprio, como não conseguir chegar a tudo e a todos fosse sempre uma falha dele, sem perceber que exigir demais é falha de quem exige. Para ele a falha era dele, e desdobrava-se. Sempre. Para não sentir que falhava. Falhar aos outros era falhar-se.
O céu estava limpo, lindo, com a lua crescente a beijar o horizonte de quando em vez, e a aparecer rendilhada quando se escondia meia envergonhada, atrás das árvores mais altas enamoradas dela. E de novo olhou para ele, agora, velando-lhe o sono e o caminho, revia o enorme homem que era, que sempre vira, que sempre sentira, e um sorriso iluminou a escuridão da viagem, como a lua iluminava a noite. Fez-lhe um carinho, uma festa no cabelo já grisalho. Quando o conhecera ainda assim não era, mas gostava assim, gostava assim ou doutra maneira, gostava dele, e apeteceu-lhe dar-lhe mimo, sem que ele soubesse, sem mesmo que ele sentisse, e pousou a sua mão sobre a dele, ele mexeu-se mas não acordou, como que se sorriu, deveria sonhar, e ela também, sonhava sempre, quase sempre acordada. Tinha uma cabeça que raramente parava, e não que fizesse por isso, só não conseguia calá-la, pará-la, controla-la, sempre a pensar, sempre a sonhar, sempre a tentar não sonhar, sempre a escrever no pensamento tanta coisa que o papel nunca conheceria. Tinha fases assim, e agora andava assim há muito tempo. Sentira-se desabrochar sob o olhar dele, não conseguindo perceber, distinguir, se o desabrochar tinha nascido da sua contemplação, se apenas aconteceu ele estar lá para ver. Mas estava diferente, sabia-o. Assustava-a não saber se para melhor, se para pior...
Finalmente a viagem acaba, ela leva-o ao destino que ele escolheu. Pára o carro. Olha-o. Dorme ainda. Dá-lhe um beijo mansinho, recosta o banco e fecha os olhos.
Ele acorda, dá-lhe um beijo pequenino na testa, e ela acorda.
- Então, chegámos e tu adormeceste?
- Era para ser acordada por ti.- diz ensonada, no meio de um sorriso. Ele abana a cabeça.
- Porque não me acordaste quando chegámos?
- Para não te acordar amor...

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