Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

17 julho 2014



"Por vezes parece que Platão tinha razão, que há quem nos suplemente de forma ideal, como se de um arquétipo de gente se tratasse. Ao contrário de Platão, ou talvez concordando com ele de uma forma que nem ele previu, esta pessoa arquetípica é alguém que não se procura, só se encontra. Platão reduziu isto à “busca de uma alma gémea”, sobresimplificando, dando-lhe um carácter de odisseia e de procura que na verdade a coisa não tem. É o próprio Platão que explica, sem querer, a verdade, na alegoria da caverna. Antes de encontrar, não sabes o que procuras. Depois de a achar, não sabes nem como viveste tanto ano antes disso, nem consegues sequer explicar a alguém o que encontraste e como é diferente. As palavras saem-te da boca mas não tens a certeza que ninguém te entenda.

Se tiveres sorte, encontrarás quem te faz sentir que voltaste a casa – a uma casa que nem sabias que tinhas. O melhor amor é feito de momentos “eureka”, e amar assim é uma sucessão de descobertas científicas, de “afinal a vida é isto e ninguém me tinha dito?”. Dás por ti a descobrir coisas em que nunca tinhas pensado, a descobrir ângulos diferentes para ver coisas que achavas que conhecias.
(...)

Penso por vezes (não o pensamos todos?) “porque dei tantas voltas para chegar onde estou?”, “porque passei tanto tempo a fazer coisas distintas destas, das que me fazem feliz?”; e depois lembro-me que Ulisses levou dez anos, depois de Tróia, a voltar a casa, a voltar a Penélope. 
(...)

As nossas vidas são, como a Odisseia, uma história sobre o voltar a casa, cheia de aventuras mais ou menos dignas, de enganos, de tentações e de tempo aparentemente perdido. E por vezes lamentamos, há quem lamente, esse tempo que se passou a fazer outras coisas – há quem ache que o destino é um lugar onde se pode chegar mais cedo, onde se pode chegar antes da hora marcada.

Mas não pode.

Provavelmente faz falta passar por uma Circe, por um voluntariado nas mãos de alguém que não é quem procuras, embora te saiba bem.

Provavelmente há que passar por uma Calypso, pela prisão, pelo ser subjugado e controlado, por te fazerem sentir impotente e sem saída, pela esquizofrenia de quem te quer mas não te ama, apenas te quer controlar.
(...)

A casa de Ulisses é Penélope, e evolui e cresce e muda, dia a dia, até ela ser a casa que ele encontra quando volta a casa, quando procurando quatro paredes encontra dois braços, melhores e mais seus do que alguma vez esperara, braços e uma mulher inteira que ele nem sabia que existia, uma mulher das que não se procuram, só se encontram.

Estava escrito."

Escrito pelo Menino para mim, só pode, é que se não foi passa a ser. 
Esta ideia de que as coisas têm de acontecer como acontecem é coisa que me diz muito, mesmo que às vezes me irrite muito o percurso, me magoe muito tudo, olho para trás e sinto que para estar onde estou tinha de estar a olhar precisamente para este passado; talvez por isso tenha sempre compreendido tanta coisa incompreensível, talvez por isso não tenha a tentação de querer mudar o passado ou arrepender-me dele, mas sim de saber que cheguei onde cheguei porque vim pelo caminho que vim. Isso dá-me talvez a noção de para onde quero ir, onde quero ir agora, mesmo que lá atrás não o tenha feito, ou tenha feito doutra maneira, ou tenha percebido que aquele não era o caminho, se não o tivesse feito não saberia. 
O passado é passado para podermos ter futuro. 
O passado é para aprender, não é para impedir o futuro que quisemos ter no passado e não tivemos, ou estaríamos noutro ponto de vida, é para pegar no ponto em que estamos e fazermos o que percebemos que já devíamos ter feito e não fizemos, ou para não fazer mais o que percebemos que não queremos.
O futuro é sempre voltar a (nossa) casa. Está escrito.

( e isto, ironicamente, estamos fartinhos de saber, demais, até à exaustão. depois lembro-me duma frase de há não muito tempo "aquele abraço fez-me sentir em casa, regressado a casa".... giro, muito giro, ser não fosse tão tragicamente ridículo eu me lembrar disso. mas sei que tem de ser para eu chegar onde vou chegar. um dia. um dia a vida encontra-me, entretanto vai acontecendo-me.) 

2 comentários:

Filipa disse...

Maravilhoso esse texto do Menino, para mim é daqueles que se demoram a ler, para não se perder pitada, tão bem escrito e tão verdadeiro e depois é tão giro ler a visão da Eva sobre o assunto :).
Boa noite Eva.

Eva disse...

Sim, muito bom, como o Menino já nos habituou. Eu só penso alto como vejo a coisa, realmente, mas não se acrescenta nada.
Boa Noite, Filipa.