Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

14 setembro 2014

"A alma dele estava completamente dilacerada. Ele vivia num mundo de fingimento e, quando a verdade destruiu esse mundo, achou que a própria realidade tinha sido destruída. A verdade é que ele nunca lhe perdoaria porque não conseguia perdoar-se a si próprio.
(...)
O rio, porém, apesar de fluir tão devagar, dava ainda assim a sensação de movimento e transmitia-lhes a melancolia da fugacidade das coisas. Tudo passava, mas onde estavam os vestigios dessa passagem? Para Kitty parecia que todos os que compunham a raça humana eram como gotas de água naquele rio e que continuavam a fluir, cada um tão perto dos outros e, ao mesmo tempo, tão longe, num fluxo sem nome, rumo ao mar. Quando tudo durava tão pouco e nada tinha grande importância, era uma pena que as pessoas, dando um valor absurdo a objectos triviais, se fizessem a si próprias tão infelizes.
(...)
-Ando à procura duma coisa e não sei exactamente de quê. Mas sei que é muito importante para mim conhecer essa coisa e sei que se a conhecesse tudo seria diferente. Talvez as freiras saibam o que é; quando estou com elas sinto que escondem um segredo que não querem partilhar comigo. Não sei por que razão me passou pela cabeça que se visse a mulher manchu teria um indicio do que procuro. Talvez ela mo dissesse se pudesse.
-O que a leva a pensar que ela sabe o que é?
Kitty olhou-o longamente de viés, mas não respondeu. Em contrapartida fez-lhe uma pergunta:
-Você sabe?
Ele sorriu e encolheu os ombros.
-O Tao. Alguns de nós procuram o Caminho no ópio, outros em Deus, outros no Whisky e outros ainda no  amor. Mas é sempre o mesmo caminho e não leva a lado nenhum.
(...)
-É o Caminho e o Caminhante. é a estrada da eternidade, percorrida por todos os seres, mas nenhum ser a fez, pois ela própria é ser. É tudo e é nada. Dela brotam todas as coisas, todas as coisas estão em conformidade com ela, e, no fim, todas as coisas a ela tornam, é um quadrado sem ângulos, um som que os ouvidos não podem captar, uma imagem sem forma. É uma vasta rede que apesar de ter as malhas tão grandes como o mar, não deixa passar nada. É o santuário onde todas as coisas encontram refúgio. O lugar não existe, mas conseguimos vê.lo sem ir à janela. Deseja não desejares, é o que o Tao nos ensina, e deixa que todas as coisas sigam o seu curso. Aquele que se humilha será preservado. Aquele que se curva será levantado. O fracasso é a base do sucesso e o sucesso o preâmbulo do fracasso; mas quem poderá dizer quando se dá a viragem?
(...)
O passado estava acabado; os mortos que enterrassem os seus mortos. Seria isto ser terrivelmente insensível? Ela esperava de todo o coração ter aprendido a compaixão e a caridade. Não sabia o que o futuro lhe reservava, mas sentia-se com forças para aceitar o que quer que viesse de espirito leve e optimista. E então, subitamente e por qualquer razão desconhecida, das profundezas do seu inconsciente emergiu uma reminiscência da viagem que tinha feito, ela e o malogrado Walter, até à cidade empestada onde ele tinha encontrado a morte: uma manhã partiram nas liteiras quando ainda estava escuro e, à medida que o dia clareava, ela imaginou, mais do que realmente viu, uma cena de tão arrebatadora beleza que por breves instantes suavizou a angústia que lhe invadiu o coração, reduzindo à insignificância todo o sofrimento humano. O sol ergueu-se, dissipando a neblina e ela viu, serpenteando pelo meio dos arrozais até onde a vista alcançava, atravessando um riacho e continuando por terrenos acidentados, o caminho que deveriam seguir: talvez os seus erros e loucuras, a infelicidade que sofrera, não fossem inteiramente em vão se ela fosse capaz de trilhar o caminho que agora vagamente discernia à sua frente, não o caminho de que o pândego do Waddington falara e que não levava a lado nenhum, mas o caminho tão humildemente trilhado por aquelas queridas freiras do convento, o caminho que levava à paz."

Somerset Maugham, in O Véu Pintado

[mais um que chegou ao fim. Estava à espera de melhor, francamente. A personagem feminina não me parece consistente, ou eu não acredito que as pessoas mudem tanto, acho que a vida muda as pessoas, sim, o sofrimento altera-nos as perspectivas e faz-nos crescer, mas a descrição da personagem no início do livro fá-la demasiado fútil, tonta e ôca para ganhar esta dimensão espiritual; principalmente o ôca, quem é ôco não tem substracto, não é estar enganado no substracto, é ele não existir; não se preocupar com nada, é não ver além de si próprio, e até em si próprio não ver além do que querem que se pense e veja de si mesmo. E é uma coisa inata, não muda para passar a perceber uma dimensão diferente das coisas, das pessoas e da vida, se nunca esteve nela nenhuma dimensão, nenhuma profundidade, senão as aparências. Mas gostei do livro, só não simpatizei com nenhuma das personagens a não ser o Waddington, esse sim uma figura curiosa.]

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