Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

12 janeiro 2015

(foto de Tazio Secchiaroli)
"Existiram sempre em mim pelo menos duas mulheres, uma desesperada e desnorteada, que se sentia a naufragar, e outra que queria apenas trazer beleza, graciosidade e vida às pessoas, e que estava pronta a entrar em cena como no teatro, pronta a ocultar as suas verdadeiras emoções, porque elas eram fraqueza, desamparo, desespero, e apresentar ao mundo apenas um sorriso…”

 Anaïs Nin

Apanhado aqui.

[Não, nunca fui assim, não sou duas mulheres, sou uma; ainda que essa uma tenha muitas mulheres diferentes, que sou eu sempre. E sou sempre a mesma. Nem todos as conhecerão a todas, ou a mim quase inteira, nem têm de conhecer, nem merecem conhecer. Talvez por isso possa parecer mulheres diferentes em ocasiões distintas, mas sou uma só. Os comportamentos são respostas às situações e às pessoas, não me ferem a consistência, nem me baralham a existência. Poucas pessoas tiveram acesso ao meu eu completo, ou quase. Acesso ao processador dos comportamentos que geram diferentes perspectivas da mesma mulher. Ao que se chama conhecer por dentro, conhecer os processos mentais e emocionais que nos caracterizam e nos dão as respostas às medidas das situações. Claro que sempre faltará uma parte, há sempre coisas só nossas, ainda que não as escondamos. Mas as pessoas de quem gosto não chegam a conhecer a minha frieza e vontade de distância, não porque queira esconder essa faceta minha, mas porque eles não ma suscitam (e quando a vêem em relação a outros, às vezes, não conseguem esconder a surpresa, o que eu acho alguma piada ao mesmo tempo que me traz a insegurança de não saber até que ponto ficam baralhadas...). Os outros, de quem não gosto, não se baralham, sabem que não me entraram nas simpatias e não disfarço, não tenho porque disfarçar, nem quando gosto, nem quando não gosto. Sou o que sou, gosto de quem gosto, não gosto de quem não gosto.
Isto tudo veio-me à cabeça com este texto, porque no outro dia alguém me dizia, entre interrogação e afirmação: "tu até pareces bem, mas estás mesmo?" e eu respondi, não, na verdade não estou nada bem. Mas eu percebi a pergunta porque já tinha dado por mim a questionar-me sobre que ideia daria eu nos dias que correm. Eu sou tão transparente que quando estou neura, ou chateada, ou irritada, olha-se para mim e vê-se, não há que enganar. Eu não ando assim, nada me chateou, nada aconteceu que me irritasse, nada suscitou uma reacção dessas que me ficam estampadas na expressão, no olhar, não sei onde, mas ficam, e vêem-se. Não, o que eu trago é só uma tristeza subterrânea, uma coisa que a superficialidade dos dias não alcança e que até protege. Uma superficialidade que chego a agradecer como se agradece a sombra num dia tórrido e asfixiante. Posso até rir, posso até fazer rir, posso atirar-me a qualquer coisa com vontade e às vezes pode até parecer ganas, mas não, é só a mecânica dos dias a trabalhar, e eu a fazê-la trabalhar para mim. Assim, a parecer estar bem e efectivamente a não estar mal - a ser o dia-a-dia.
Quando os dias páram, mais ou menos a esta hora, a maré subterrânea começa a subir e a submergir a superficialidade dos dias. É quando surgem todas as perguntas, as mesmas e diferentes; arranja-se sempre mais uma, mais uma estupefacção, ou mais uma estupidez para adoração. Arranjei um saco onde despejo estas coisas da alma, fechado, hermético, mas que às vezes pontapeia por dentro, durante o dia, desavisadamente, a um qualquer sinal que nos submerge num instante para nos roubar um  momento que já tivemos, já vivemos, e já perdemos. É uma gravidez sem termo que há anos se nos mexe por dentro, cada vez mais dentro, cada vez mais longa. Fora esses pontapés que nos roubam o que lhes demos, a alma cala-se durante os dias que me fazem mexer sem sair do lugar, para quando abre a noite me fazer parar e o desassossego espernear na alma. O saco abre-se, respira e asfixia-me. Mas agora, aqui, sozinha, ninguém vê e ninguém sabe se estou bem, se estou mal, ou se nem me sinto. Ninguém me sabe, eu sinto.]

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