Eva me chamaste

Fizeste das minhas costas o teu piano

Dos teus desenhos as minhas curvas

Da minha boca a tua maçã

Dos meus olhos o teu mar

Do meu mundo os teus braços


(...)

08 fevereiro 2015


Estavam os dois a ouvir a mesma música que o rádio ia debitando na noite, nas salas contíguas onde os dois se sentavam: ela no sofá à volta de palavras num livro, ele à volta de papéis de trabalho. Não era assim sempre, era assim quando calhava, quando tinha de ser, ou quando os dois queriam. A música que começava no rádio fechou-lhe o livro e o espaço para palavras, acordou-lhe o sangue da alma e a dança no corpo. Começa a deixar o corpo falar da música, invadi-la, conquistá-la até a sentir por dentro da pele, a comandar o corpo que deixava de ser seu, e ao mesmo tempo nunca falava tanto por ela, e dela, como quando se deixava dançar assim. Só ela e a música. Havia alturas em que parecia tornar-se uma necessidade, libertar o corpo, soltar a alma; e tudo isso fazer uma música que se sente por dentro, e que somos nós numa forma pura e estranha: essencial. Desfaz-se do casacao e das meias sem medo do frio, espanta o frio no calor dos movimentos que lhe cresciam no corpo, que a música vai roubando ao corpo sem licença de pudor. Tira as meias que se agarravam ao tapete, solta os cabelos quando já tudo corre solto e o sorriso lhe desenha as feições. De olhos fechados entrega a alma à música, deixa-se levar. Nada é tão reconfortante como deixarmo-nos levar sem medos, sem rédeas, sem muros. Abre os olhos e vê, em sobressalto, os dele. À porta, a olhá-la como se a visse pela primeira vez, a apaixonar-se tudo de novo, a querê-la com a urgência dos inícios. Ela reconheceu-lhe o olhar, era o mesmo que ela tinha quando o via a andar na rua, quando o via a trabalhar, de cigarro por acender na boca, a apontar aquele dedo não se sabe para onde quando se queria lembrar dalguma coisa que lhe parecia fugir, depois lembrar-se e "Ahh..." enquanto recolhe o dedo à normalidade absurda de não apontar para nada, quando o via a arrumar a cozinha ou atrás de fios teimosos, quando o via falar com o miúdo do bar quando ia pedir uma bebida - de cada vez, ela olhava-o assim, como agora reconhecia no olhar perdido dele, a meio caminho entre o sorriso e a perdição. Ela só disse "anda"... e estendeu a mão para lhe dar o corpo todo. Ele não sabia, mas ele era a música dela desde que tinha cometido o erro de lhe roubar um beijo, sem ela nunca aceitar que ele o devolvesse. Era ele que dançava nela a cada música que lhe chamava a alma.

Bom dia
(acordei com esta cena, tenham paciência, isto passa)

Sem comentários: