Enquanto fazia uns ovos mexidos e uma torradita de jantar, batia os ovos e pensava que de todas as pessoas que me passaram na vida e de quem gostei quase nenhuma se interessou realmente por mim. E quando digo interesse por mim, é interesse na minha pessoa, em quem sou, como sou e como me fiz quem sou, as estruturas que me suportam o eu. Interessam-se sobre o que gosto de fazer, o que penso sobre algumas coisas, do que gosto, mas não sobre mim, sobre o passado, sobre a vida que tive, o que vivi, o que tive a mais o que tive a menos, o que nunca tive, o que me torce a alma até escorrerem lágrimas. Eu sempre me interessei pelas pessoas, pela maneira como pensavam, mas principalmente o porquê de pensarem assim, as origens das coisas, os porquês. Engraçado que as pessoas gostam sempre de falar de si, e se se souber ouvir, e fazer algumas das perguntas certas, as pessoas falam, explicam-se, revelam-se, traçam o mapa de si mesmas. E quando gosto de alguém, gosto de lhe conhecer o mapa, de saber os porquês e os comos, gosto de encontrar o fio que une a vida da pessoa, as suas atitudes, o seu modo de pensar e viver, e claro de sentir. Do outro lado, esse interesse raramente o noto, penso que só uma pessoa me conheceu melhor e quis mais saber de onde e como cheguei ao que sou, foi a única que acho que realmente gostou de mim, verdadeiramente, genuinamente, ainda que não da maneira certa - ou da maneira certa para mim-, e a culpa foi minha, provavelmente toda a vida andei a tentar esconder-me duma parte de mim, abafá-la, asfixiá-la, domá-la. Não consegui, como agora entendo, que nunca se consegue porque nós vimos sempre, e sempre viremos ao cimo de nós mesmos, seja como for, venha o que vier - mais tarde, ou mais cedo, há que aceitar. A paixão que me corre nas veias, a vontade que me brilha o olhar, a vontade de amar sem chão e sem razão, rompeu os dias que queria certos e racionais, arrumados para uma vida, que depressa se mostrou não ser vida para mim, não ser a minha vida. Não era eu. Eu tenho de escrever, de transbordar em palavras, tenho de escavar em mim e nos outros, tenho de entender, e tenho de me dar mesmo quando tudo me diz para não o fazer. Tenho de chegar ao fim do caminho, tenho de percorrer o caminho, porque o tenho nos pés antes de o fazer. E foi o que fiz quando acordei em mim e numa vida onde os meus pés não mexiam, calçados onde não cabiam. Descalcei-me, e pé no chão pisei as pedras que no meio do meu caminho me apareceram, não desviei caminho, não tomei atalhos, não pensei se haveria lugar melhor ou caminho menos doloroso. Aquele era o meu caminho, era o caminho dos meus pés, eles sabiam e não paravam. Não pararam. Chegaram onde tinham de chegar. E nunca em todo o caminho, o de agora ou outros de antes, alguém o entendeu ou quis entender. Nunca ninguém se interessou pela vontade dos meus pés, o porquê, onde e como começaram a andar, do que fugiram toda a vida, ou do que toda a vida tiveram medo, do que os fazia correr caminhos de alma mesmo amarrados. Nunca ninguém, à excepção da pessoa com quem casei, me quis saber por dentro desde o inicio do meu tempo, e essa pessoa não me entendeu, nem poderia, não mostrei o que queria esquecer que tinha, que queria domar sabendo que não era amestrável, eu sabia que não o entenderia, eram caminhos que ele não saberia pisar comigo, não lhe moravam nos pés. Mas nada o impediu de tudo o que de mim sabia o usar contra mim quando os caminhos se desencontraram, quando quis aprofundar as feridas que sabia e conhecia o lugar. Mas ao menos ele fez por conhecê-las. Não tenho rancores nem ódios, quero estar bem, só isso, como sempre quis e por isso sempre passei por cima de tanta coisa, até ao ponto de, de tanto amontoar coisas e tentar passar por cima, elas tornaram-se tamanha montanha que a luz deixou de passar, e eu deixei de subir a montanha para chegar ao lado onde tudo isso ficava para trás. O casamento acabou. Uma parte de mim renasceu, os meus pés mexeram-se e descalçaram-se.
Eu, quanto mais gosto da pessoa, quanto mais genuinamente gosto dela, mais a quero desvendar, e quanto mais desvendo mais compreendo e mais compreendo o que gosto e não gosto, mas aceito porque posso entender e porque gosto. Neste momento ninguém no mundo sabe como estou, se estou, o que passo, o que penso, ou como, ou o porquê de tudo isso. Os porquês, sempre os porquês. Nunca ninguém mais quis descobrir a resposta ao meu. É preciso gostar, gostar genuinamente para querer saber o porquê e amar além de todos os porquês - os meus e os dele.
[ainda bem que o prato não era elaborado senão o testamento não sei que comprimento teria...]